Geral > Distorções da Memória e Acusações de Abusos Sexual

Breve historial e resumo do estudo sobre distorções da memória e sua influência nas acusações de abuso sexual

por: Professor Pio Abreu

As questões da violência doméstica e do abuso de crianças têm sido encaradas pelos legisladores nas últimas décadas. Tal tem acompanhado o maior respeito pelos direitos humanos, incluindo os das minorias desprotegidas e dos seres que, pela sua natureza, não se podem proteger por si próprios: as crianças. Mas também reflectem a desejável emancipação das mulheres e uma cultura "politicamente correcta" com alguns laivos de feminismo militante.

Após as novas medidas legislativas, a partir dos últimos 15 anos, nos Estados Unidos, Canadá e em vários outros países, os tribunais começaram a receber queixas de alegadas vítimas de abusos durante a infância. Estas vítimas eram, frequentemente, adultos (na maioria mulheres) que alegavam violações por parte dos seus pais quando eram jovens. Alegavam ainda que, durante muito tempo, haviam esquecido (reprimido) esses abusos e que, agora, com a ajuda de psicoterapeutas, tinham recuperado a memória do que lhes tinha acontecido. Frequentemente, exigiam indemnizações para reparação dos danos. Ocasionalmente detectaram o logro em que tinham sido induzidas e retractaram-se.

Estas queixas atingiram foros de epidemia. Muitas delas ocorreram depois da leitura de The Courage to Heal, um livro publicado por Ellen Bass e Laura Davis (duas autoras sem qualificação profissional, uma delas alegadamente abusada, que assumem uma perspectiva feminista), em 1988, que encorajava as mulheres adultas a descobrirem as suas memórias ocultas de abusos na infância. Noutros casos tratava-se de tratamentos psicológicos, de raiz psicanalítica "selvagem". Para muitos destes terapeutas, um grande leque de sintomas, incluindo perturbações do comportamento alimentar, tinham como causa um abuso sexual na infância. Tratava-se então de o descobrir, para o que se usavam diversas técnicas que iam desde a escrita automática até à hipnose.

Seguiam-se as queixas e os processos judiciais. Muitos pais, já na casa dos 70 anos, foram surpreendidos pelas queixas em tribunal e procuraram recorrer a peritos médicos que trabalhassem na área. Este movimento deu origem à criação, em 1994, da Fundação do Síndrome das Falsas Memórias (http://www.fmsfonline.org/), que impulsionou uma extensa investigação na área da memória. As suas conferências reuniram os mais destacados investigadores nesta área, mas foram por vezes tumultuosas. Ainda hoje se podem notar as resistências e críticas dos terapeutas que defendem a recuperação das memórias de abusos, o que tem levado a posições institucionais sobre o assunto.

Apesar das críticas iniciais, são hoje inquestionáveis as experiências e observações acerca da possibilidade de implantar falsas memórias em pessoas mais ou menos sugestionáveis. Para além das experiências científicas em que se destacou Elizabeth Loftus, têm sido analisadas várias memórias impossíveis, como o rapto por extraterrestres, rituais implausíveis ou a "descoberta" de memórias de gerações anteriores. Em simultâneo, a possibilidade de estudar o ADN tem libertado das cadeias muitos presos inocentes, por vezes com a descoberta dos verdadeiros culpados. Numa análise de 40 destes casos (Gary Wells et al., 1998), verificou-se que 36 (90%) tinham sido vítimas de testemunhos erróneos. Também 90% dos casos analisados por Scheck et als, (2000) correspondiam a identificações erradas, feitas pelas testemunhas. Surpreendentemente, alguns destes falsos culpados, não só foram incriminados por vítimas de distorções mnésicas, como eles próprios acreditaram e confessaram que tinham cometido o crime. Estes casos foram revistos por Gudjonsson (2003), que tem questionado a forma como os interrogatórios policiais podem levar a falsos testemunhos e convicções.

Depois das grandes polémicas científicas (em grande parte motivadas pelas paixões humanas que o tema da justiça e sexualidade desencadeiam), pode-se hoje chegar a um conhecimento científico mais seguro. Um dos autores de referência é Daniel Schacter, que publicou recentemente um livro elucidativo: The Seven Sins of Memory (2001). Por outro lado, não cessam de aparecer nas revistas científicas os artigos relacionados com a fidelidade das memórias e testemunhos infantis. A investigação prossegue, mas existe hoje um corpo seguro de novos conhecimentos.

Embora o chamado síndrome das falsas memórias seja uma designação recente relacionada com o problema dos falsos testemunhos, o fenómeno não é novo em Psiquiatria. A pseudologia fantástica é um sintoma semelhante, há muito descrito, correspondendo a memórias espontâneas implausíveis que ocorrem associadas às perturbações do espectro histriónico (o espectro histriónico corresponde às perturbações dissociativas, anteriormente chamadas "histéricas"; outros sintomas mais, como as confabulações, paramnésias, alucinações mnésicas e recordações delirantes estão geralmente associadas a patologias mais graves, pelo que não os consideraremos aqui). O novo enfoque do problema tem a ver com o modo como se originam essas falsas memórias.

O modo mais eficaz e conhecido é a submissão a práticas hipnóticas. A indução de hipnose é um processo conhecido desde há mais de dois séculos. Qualquer pessoa com um mínimo de competências interpessoais o pode aprender (ele está disponível na Internet, em diversos livros e cursos), embora muito se discuta sobre a ética do seu ensino e, sobretudo, da sua prática por pessoas não qualificadas. A eficácia do procedimento pode depender da perícia (e fama) ou autoridade do hipnotizador mas é, sobretudo, dependente da sugestionabilidade do hipnotizado. Quinze a 20 % das pessoas são altamente sugestionáveis. Entre os factores pessoais que aumentam a sugestionabilidade conta-se a idade jovem, imaturidade psicológica, submissão anterior a hipnose ou rituais similares, propensão a crenças subculturais, alcoolismo e consumo de fármacos, como as benzodiazepinas.

Tem-se discutido muito a facilidade da indução de hipnose a uma pessoa que sofra de estados dissociativos. A tendência recente é considerar que ambos os estados (hipnóticos e dissociativos) são da mesma natureza, sendo a dissociação uma espécie de auto-hipnose. De qualquer modo, os estados do tipo hipnótico ocorrem frequentemente no dia a dia e na relação interpessoal comum. Mesmo que não se induza formalmente um estado hipnótico, existe a possibilidade de induzir sugestões simples que levam a desejos, crenças e memórias firmadas, embora falsas. Quando essa relação é assimétrica (um dos intervenientes tem um estatuto de poder superior), pode ocorrer uma indução sugestiva ou hipnótica, insuspeitada por qualquer um dos interlocutores. Um facto recentemente notado pela ciência psicológica é a capacidade de cada pessoa, numa relação interpessoal, se adaptar às expectativas da outra.

A interacção entre um adulto dotado de poder (pai, psicoterapeuta, polícia, procurador) e uma criança ou um jovem vulnerabilizado pelos factores descritos, é a mais melindrosa no que respeita à indução insuspeitada de sugestões. Numa revisão das experiências recentes, Maggie Bruck (1999) inventaria as seguintes possibilidades:

Enviesamento do entrevistador: em repetidas entrevistas, o entrevistador, convicto de que certo acontecimento ocorreu, tenta recolher apenas a evidência confirmatória, evitando qualquer caminho que o possa desconfirmar. Por exemplo, não pergunta se ele presenciou o acontecimento com os seus próprios olhos ou se alguém lhe falou sobre ele. Pelo contrário tende a colocar questões nesta forma: "É muito importante que me fales só das coisas que realmente aconteceram. Isso aconteceu realmente?".

Perguntas fechadas versus perguntas abertas: As respostas das crianças são mais seguras quanto se põem questões abertas (do tipo "O que é que aconteceu?") do que quando se colocam questões fechadas ("Ele fez-lhe ...?"). O efeito é tal que a veracidade da resposta reduz-se de 91% em questões abertas para 45% em questões fechadas. As perguntas de escolha forçada ("É branco ou preto?") são igualmente perigosas, já que a criança tem dificuldade em dizer que não sabe. A explicação para este facto é que as crianças são cooperativas e não percebem que o entrevistador adulto as pode enganar. Muitas vezes tentam adivinhar a intenção do entrevistador para tornar as respostas consistentes com as expectativas dele.

 

Repetição de perguntas fechadas: Se se pode questionar a veracidade da resposta a questões fechadas, o problema complica-se quando essas questões são repetidas na mesma ou em várias entrevistas. Ao fim de 3 perguntas, a criança deixa de responder "pode ser que sim" e confina-se a um inquestionável "sim". Pode mesmo vir a acrescentar detalhes imaginados sobre a ocorrência que agora lhe parece inquestionável. Aparentemente, ela esforça-se por satisfazer as expectativas do inquiridor.

Repetição de informações erróneas: quando uma informação falsa é repetida ao longo de várias entrevistas, a criança acaba por introduzir essa informação na cena, mesmo que tenha uma boa memória dos factos centrais. Por exemplo, num grupo de crianças que foram a um pediatra (masculino) para serem vacinadas, foi-lhes dito que quem as inoculou foi uma assistente (do sexo feminino). Algumas delas acabaram por dizer que, apesar de serem inoculadas pelo pediatra, a sua assistente (de facto inexistente) lhes tinha observado o nariz e as orelhas. Esta resposta obteve-se uma semana depois do acontecimento; porém, um ano mais tarde foi possível introduzir falsas memórias relativamente a acontecimentos centrais, provavelmente devido à natural degradação das memórias reais. Este fenómeno é muito comum, mesmo em adultos, e conhecido por "confusão das fontes" (da memória).

Criação de um clima emocional: por exemplo, 4 anos depois de uma visita de um grupo de crianças a um laboratório universitário, Goodman e colaboradores (1989) criaram um clima acusatório em relação a algo que lá acontecera, dizendo-lhes "Estão com medo de falar? Vão-se sentir melhor se falarem" Apesar de recordarem muito pouco da visita, algumas crianças disseram que foram beijadas, que lhes deram um banho ou que foram fotografadas na retrete. Este clima pode ser acentuado por mensagens não verbais, como o tom de voz, gestos, postura, expressão e olhar.

Indução de estereótipos: se informamos repetidamente uma criança de que uma determinada pessoa faz "coisas más", as crianças tendem a descrever as suas más acções. Por exemplo, um professor descreveu pormenorizadamente as asneiras do seu amigo desajeitado, Sam, que acabou por visitar as crianças. No dia a seguir à visita, o professor mostrou-lhes um livro rasgado e um boneco sujo. Semanas depois, algumas crianças (de 4 anos) disseram que o responsável era Sam, e que o viram rasgar o livro e sujar o boneco.

Expansão do pensamento e imaginação: esta técnica foi frequentemente usada, a par da hipnose, para a recuperação da memória de abusos. As pessoas são encorajadas a pensar livremente sobre um acontecimento, incluindo como ele poderia ser (mesmo que não tivesse sido) e a organizar diversos detalhes à sua volta. Esta técnica tem efeitos semelhantes à hipnose, levando por vezes a falsas memórias. Em crianças o risco é maior, já que elas têm dificuldade em distinguir entre as memórias dos acontecimentos ocorridos e daqueles que foram imaginados.

Influências sugestivas mais subtis e múltiplas. Para além das descritas, podem contar-se diversas formas de sugestão, como a tendência a conformar a opinião dos colegas, a influência dos pais ou organização de material difundido, ou o aumento da auto-estima (dizendo-lhe, por exemplo: "Só tu é que consegues ter a coragem de dizer isso"). Quando um investigador tem um preconceito sobre determinado acontecimento, ele tende a usar, mesmo sem se aperceber, múltiplas técnicas sugestivas, aumentando assim a probabilidade de indução de falsas crenças.

Em função de todas estas constatações, o testemunho de crianças, mormente no que respeita a abusos sexuais, perante a falta de provas objectivas, tende a ser rodeado de inúmeros cuidados. Dois deles são elementares. O primeiro é evitar o contacto com pessoas interessadas na acusação (ou refutação), recorrendo-se, desde o início, a peritos treinados pela própria polícia. Quando o relato já está construído por insistência de pessoas interessadas na acusação (com a eventual intervenção de psicólogos clínicos) é extremamente difícil chegar a alguma conclusão, mesmo que o abuso tenha realmente ocorrido. O segundo é registar em vídeo qualquer declaração da criança, de modo a que peritos e observadores independentes (ou contraditórios) possam ter acesso às circunstâncias verbais e não verbais em que o relato se produziu.

José Luís Pio Abreu

 

 

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