>

Esta secção destina-se a divulgar opiniões de várias individualidades dos mais variados sectores, publicadas ou proferidas publicamente ao longo destes anos.

Estes depoimentos são apenas uma pequena parte do que foi divulgado pela Comunicação Social mas, mesmo assim, a sua força é indiscutível e prova que não sou só eu a detectar a forma inequivocamente errada como este Processo foi conduzido.

Muito fica por divulgar mas a idoneidade das afirmações aqui reproduzidas não pode ser, pelo prestígio e responsabildade dos seus autores, posta em questão.

1. Moita Flores - Ex PJ, Professor Universitário, Escritor e Criminologista

UM ACÓRDÃO SEM NEXO

Não encontrei ainda coisa séria e sustentada que me leve a não acreditar no juramento de inocência que o Carlos me fez (...)

Correio da Manhã - 20 Abril 2003

Por: Francisco Moita Flores, Criminologista

Quando surgiram as primeiras notícias sobre o 'caso Casa Pia' e tendo vindo à baila o nome de Carlos Cruz, fiquei surpreendido. Conheço-o vai para quinze anos e tenho dele a ideia de um homem afastado desse mundo da pederastia. Passados alguns dias do início deste sururu, o Carlos Cruz telefonou-me. Almoçámos na Expo e percebi que estava muito angustiado com as primeiras notícias. Jurou pela saúde das filhas a sua inocência.
Nessa altura eu disse-lhe claramente que se porventura chegasse ao meu conhecimento uma prova que fosse do seu envolvimento na rede pedófila não poderia continuar a contar-me como um dos seus amigos. Abuso sexual, violação, violência sobre menores é qualquer coisa que me repugna visceralmente, que seria incapaz de cumprimentar, ou lidar, com alguém que viva desses expedientes.
Ficámos assim. Desde então passou-se muita coisa. De vez em quando era avisado de que iria rebentar a prova definitiva contra Carlos Cruz. Hesitei nas minhas convicções e acompanhei por vezes com expectativa o surgimento dessas ditas provas. E depois de tudo o que se viu, e leu, não encontrei ainda coisa séria e sustentada que me leve a não acreditar no juramento de inocência que o Carlos me fez naquele almoço. Sobretudo agora que me veio parar às mãos parte larga do acórdão que lhe confirma a prisão. É um documento sem nexo. Um documento corporativo que despreza a distanciação, para extrapolar, hiperbolizar e insinuar. Quanto aos depoimentos transcritos nem se percebe como tanta superficialidade é admitida como credível. Depois é o delírio. Vítimas examinadas no IML têm sinais de terem praticado relações anais. Não admira, tratando-se de miúdos violados ou de rapazes prostitutos.
O problema é que se aceita que existe um nexo de causalidade entre esses exames e Carlos Cruz sem que se demonstre o determinismo. O problema é que se aceita uma arenga própria de 'sitcom' para sobrelevar a hipótese de ele querer fugir ou não fugir. É de gargalhada a argumentação. O problema é que se aceita que Carlos Cruz procurou pressionar a Justiça por causa de quatro ou cinco iniciativas de amigos e ignora-se a enorme pressão que dia após dia a comunicação social, em clara aliança com fontes anónimas próximas do processo, fez para o empurrar para o fundo mais negro da prisão. Os meritíssimos esqueceram-se das 'cachas' que o davam a fugir quando foi para a casa do sogro, de cartões de crédito identificados pelo FBI, dos vídeos que teriam sido apreendidos, dos depoimentos de cara tapada, insinuantes e sem consistência. De onde se conclui que esta gente não lê. E não vê. A não ser o 'Bombástico', no acórdão sublinhado ironicamente. Basta que tenha sido sobrelevado o facto de uma testemunha descrever sinais particulares no corpo de Carlos Cruz e não ter havido uma douta e iluminada decisão para comprovar se esses sinais eram verdadeiros ou não. Até a mediação em que no início eu próprio intervim entre Pedro Namora e Carlos Cruz está eivada de mentiras. Aliás, como o próprio P. Namora honradamente assumiu à RTP. Os meritíssimos acabam o seu acórdão pior do que começaram. Com a insinuação de que entre os amigos de C. Cruz que promoveram as iniciativas de apoio estão pedófilos.
Nem o célebre inquisidor Varojão Távora chegou a tanto no séc. XVIII. Pelo menos quando perseguia maçons e estrangeirados também lhes prendia os amigos mas dizia-lhes os nomes. Não lançava apenas o labéu alcoviteiro e ordinário e cobarde. A melhor maneira de defender as vítimas casapianas é procurar a verdade. Apenas a verdade. E só a verdade. Sem artifícios nem leviandades. Porém o que está a dar é liquidar seja quem for que se oponha à verdade oficial feita de fé e intenções. Mas isto já não é um processo-crime. Tem outro nome, e bem feio por sinal.

 

O FUMO E O FOGO

O fumo destes dois casos (Casa Pia e Moderna) tem permitido que as grandes questões (...) passem ao lado do debate público

Correio da Manhã - 27 Abril 2003

Por: Francisco Moita Flores

Se o tumulto criminal que atravessa o país fosse aquilo que nos é dado em doses maciças pela comunicação social ficaríamos com a ideia de que mais nada acontece,para além do 'caso Moderna' e do 'caso Casa Pia'. O primeiro enche páginas há quatro anos e não tenho dúvidas que poucos sabem que factos ali estão em apreço para além da arenga sobre Paulo Portas. Agora, como casos em julgamento pudessem ser doenças e tivessem recaídas, desataram a chover 'cachas' que revelam, como se de primeira mão se tratasse, cheques para aqui e para ali, escondendo deliberadamente, que todos esses cheques foram reproduzidos na imprensa duas, três, quatro vezes ao longo de anos. Basta ter tido acesso à acusação, e ao relatório da PJ que a suporta, para se descobrir que tudo isto foi notícia há muito tempo. E não houve redacção no país que não tivesse, na altura, cópia da acusação. Portanto, as reedições que agora surgem não trazem novidades. É apenas chover no molhado.
O que se passa em Monsanto é coisa bem mais grave do que esta revitalização de notícias velhas que servem às mil maravilhas como manobras de diversão mas que deixam o rabo do gato de fora. O que ali se passa tem a ver com a destruição quase até aos caboucos de uma das universidades privadas que mais prestígio acumulou no campo do ensino e que, em menos de dois anos, foi espoliada em centenas de milhares de contos (talvez milhões), arruinada no seu prestígio, desacreditada pelo vento de loucura que a destruiu até ao limite. O que ali se passa tem a ver com uma gestão que varreu por completo a sanidade e a trocou por mais de meia centena de automóveis de luxo, por cartões de crédito ilimitados, por almoços e jantares, festas públicas e privadas que de próspera a converteram em arruinada. Mesmo que fosse verdade o tal cheque que pagou o alojamento de Portas em Braga - e pelos vistos não é - o que tem preocupado os jornais, e a política que neles bebe sangue, são os tremoços ignorando as imperiais. Ou seja, as dezenas de postos de trabalho feitos em papas, milhares de alunos com o currículo estragado porque ser da Moderna passou a ser estigma para muitos. Nem se conseguem imaginar os prejuízos.
Quanto ao 'caso Casa Pia' a coisa transformou-se em novela. E rasca. Está criada a ilusão que o problema é Carlos Cruz versus Casa Pia e pronto. Isto contenta o pagode. Mas a verdade é outra. É a existência de uma rede pedófila que durante décadas violou, humilhou, maltratou centenas de crianças e que continua escondida e à espera de ser desmantelada. E como essa verdade não é conhecida, malhe-se naquilo que mais se tem à mão. Agora proibido de falar, com a defesa impedida de conhecer a verdade e de se manifestar, com acusadores e comunicação social geminados na mesma sanha persecutória só os desatentos ou descuidados é que ainda não perceberam que já não vale a pena alguém preocupar-se com a sorte de Carlos Cruz. Está definitivamente condenado. Embora a rede pedófila continue à solta. Mas isso não interessa.
A verdade é que o fumo destes dois casos tem permitido, por outro lado, que as grandes questões associadas à segurança interna, à organização e integração das polícias, à avaliação correcta da criminalidade que aos poucos se instala, e vai ganhando carta de alforria, passem ao lado do debate público. O verdadeiro fogo está fora das preocupações dominantes pelo que não vale Jorge Sampaio vir falar dos desafios que se colocam devido ao terrorismo, à criminalidade económico-financeira, ao crime organizado. Porque até tem razão. Mas isso é pouco relevante num país que apenas se reconhece no 'reality show' que resulta do foguetório com que nos deliciamos.

  

OS MENINOS DE CATALINA

Algumas dessas testemunhas são, apesar da idade, bandidos do pior quilate, mentirosos sem quartel

Correio da Manhã - 31 Agosto 2003

Por: Francisco Moita Flores

Na galeria de livros sobre crianças na história da minha memória, retenho três, oriundos do neo-realismo português e brasileiro, que tocaram a minha maneira de entender o mundo. 'Os Esteiros' de Soeiro Pereira Gomes, 'Os Capitães da Areia' de Jorge Amado e 'A Infância dos Mortos' de José Louzeiro, infelizmente não publicado em Portugal. Têm várias comunhões estas obras. Estiveram todas proibidas pela censura, em todos são as crianças os actores centrais da trama narrativa e crianças marginalizadas, vivendo entre o crime e a clandestinidade, urdindo laços de solidariedade e crendo numa ordem exterior, e quase sempre em conflito com a ordem moral ideologicamente dominante. Numa dedicatória poética mas que é a síntese do seu livro, Soeiro Pereira Gomes haveria de dedicá-lo 'Aos filhos dos homens que nunca foram meninos'.
Mais tarde, já polícia, haveria de ter muitos encontros com estes meninos filhos de ninguém. E reconheço que a necessidade de não ser injusto me levou a um olhar menos romântico e claramente crítico a todas as construções do mundo das crianças como o paraíso da puerilidade e da candura. Quer isto dizer que não admiro sobremaneira a teoria do Bom Selvagem proposta por Rousseau, e agora mais recentemente por militantes exacerbados da causa antipedófila que procuram meter no mesmo saco da inocência e beatitude todas as crianças da Casa Pia.
A reportagem publicada esta semana pelo 'Independente' sobre algumas das testemunhas deste processo só é um murro no estômago para quem procurou olhar este caso vestindo uma camisola apressada. Ou a da acusação e, por isso, todos os presos estão bem presos e as testemunhas são meninos seráficos, rudemente expostos à brutalidade libidinosa dos seus violadores, ou a da defesa, cujos argumentos usados para clamar inocências absolutas chegou à brutalidade de inventar cabalas e perseguir obsessivamente aqueles que foram eleitos pelos seus ódios de estimação.
O problema é outro. É o da profunda ignorância sobre o mundo hesitantemente ambíguo entre a inocência e a mais despudorada barbárie em que estes rapazes-testemunhas-vítimas cresceram e se formaram. Não é novidade aquilo que o 'Independente' publica. Algumas dessas testemunhas são, apesar da idade, bandidos do pior quilate, mentirosos sem quartel, e gente sem escrúpulo nem princípios. Mas também é possível que outras vítimas não o sejam. Apenas existe uma verdade absoluta. Nem todos são seráficas criaturas e nem todos são bandidos. O erro de Catalina Pestana, que lamento ter errado e ter desiludido aqueles que como eu acreditavam nela, foi querer meter os 'seus meninos' todos no mesmo saco. Afirmou-o bastas vezes. Assim como o pedopsiquiatra Pedro Strecht que neste jornal jurava solenemente que não havia testemunhas prostitutos frequentadores dos locais de prostituição. Afinal, ele sabia há anos - algumas dessas testemunhas eram seus doentes e os relatórios agora publicados não deixam dúvidas. Cometeram o grave erro de vestir uma camisola quando isso não lhes era pedido.
A suspeição está instalada. E sabendo-se que alguns desses 'meninos' já foram testemunhas presenciais noutros processos crime, este golpe de rins do Juiz de Instrução dando agora o dito por não dito e aceitando a videoconferência, por mais sublimes que sejam os seus fundamentos, não vai deixar de ser interpretado pela opinião pública, cada vez mais atenta, como uma manobra para adiar a descoberta formal, liberta do Segredo de Justiça, desta verdade que Jorge Amado e Pereira Gomes há tantos anos nos ensinaram. Julguem-se e condenem-se os culpados de pedofilia. Mas por causa da verdade. É que, por mais que custe aos inquisidores morais dos novos tempos, não existem anjos na Terra. Mesmo que sejam meninos. Ou tão só que apenas sejam filhos dos homens sem nunca terem sido meninos.

 

CARTAS ANÓNIMAS E ÁLIBIS

Temo que o terramoto apregoado não passe de um alguidar de barrela para lavar roupa suja (...)

Correio da Manhã - 04 Janeiro 2004

Por: Francisco Moita Flores, criminologista

O início do conhecimento da acusação no caso Casa Pia, despejada gota a gota, não augura nada de bom. E se ainda é cedo para questionar a investigação e os métodos escolhidos para sustentar a prova, aquilo que já se sabe é suficientemente grave para que não se tirem conclusões políticas, de política judiciária claro está, perante o que já foi revelado.
O problema central está no quadro daquilo que poderíamos definir pela ética da investigação criminal. É certo que segundo o modelo português, a fase da instrução, dirigida e construída pela Acusação, tem como objectivo a realização do chamado princípio do acusatório, isto é, em linguagem simples, quem acusa é que tem de provar os factos. Sublinhei deliberadamente o verbo provar. É que a investigação criminal, ao contrário da investigação jornalística, não lhe basta divulgar com base em conhecimento de superfície. Tem regras claras e claramente limitadas no tempo. Dito de outra forma, apesar de se falar em acusação, investigar é desde o primeiro momento um acto que busca como essência da sua própria natureza o contraditório. Isto é, a investigação formula uma hipótese. O fulano A cometeu este crime. E a hipótese não surge do nada. Vem do caudal de informação que lhe aponta o dedo acusador. Mas é fundamental que a própria investigação que está a procurar acusar faça a pergunta contraditória: mas será que A cometeu este crime? Tal tratamento heurístico e hermenêutico dos indícios é que permite dar-lhe a dimensão jurídica de prova.
Ora, a ser verdade o que foi publicado, existem arguidos acusados de crimes que não os poderiam ter praticado devido ao facto de estarem noutro lugar. Alguns deles bem longe do País. A ser verdade, repito, falhou aqui esta tensão contraditória que teria facilitado em vez de complicar.
Também já o disse, e reconheço que não foi popular aquilo que disse, num País com má consciência por décadas de desprezo pelos direitos da criança e que de repente quer resolver todas as suas más consciências pela via inquisitorial, da vingança e da justiça privada, que particularmente os crimes associados à pedofilia, graças a actual sensibilidade colectiva para o problema obrigavam, logo no início da investigação a cuidados e cautelas que vão muito para além do que é normal. É que a carga de censura social e moral que impende sobre meros acusados é muito maior do que a medida da pena que o direito estabeleceu para estes crimes. Basta a indiciação para destruir vidas. Aconteceu noutros países e pode bem vir a acontecer aqui.
A euforia jornalística contaminou a própria recolha de prova e esta ausência de sensibilidade, esta desumanização do próprio processo (que em si mesmo visa a protecção da dignidade humana) fez com que não houvesse cuidado em separar trigo e joio. Quer pretensos crimes já prescritos (porque se estão prescritos não foram investigados e por isso não se pode saber da sua verdade intrínseca) quer a indiferença face à gravidade de cartas anónimas, que atingem a honra de gente sem mácula, revelam o mais profundo desprezo face ao bom nome daqueles que nem o direito de se defender vão ter. Uns porque o pretenso crime já prescreveu, outros porque a carta anónima apenas serviu de apenso e era desnecessária à investigação.
É esta ausência de humanidade que me aflige. A lei pela lei, letra a letra, sem lhe reconhecer a dimensão moral e o limite ético e sem curar de resguardar aquilo que é acessório do que é fundamental.
Estamos no início do conhecimento da acusação mas a estrada parece pejada de escolhos. E temo que o terramoto apregoado não passe de um alguidar de barrela para lavar roupa suja enquanto os culpados, bem, desculpem, mas no meio deste batota toda há ainda alguém preocupado com os verdadeiros culpados?

 

O PROBLEMA CARLOS CRUZ

(...) é mais fácil estar pró ou contra. Não obriga a pensar. Apenas a aceitar a verdade do acusador ou da defesa.

Correio da Manhã - 08 Fevereiro 2004

Por: Francisco Moita Flores (Criminologista)

Ao longo da semana passada a comunicação social, sem morte no estádio nem cataclismo à mão para apaixonar as almas descontentes com a crise, decidiu dramatizar e dar estatuto de questão nacional à decisão de Rui Teixeira sobre o destino de Carlos Cruz. Finalmente, depois de uma semana de conversa da treta, durante o programa Vidas Reais, um belo programa para anunciar coisas da treta, o país vigilante e noctívago, coscuvilheiro e sedento de sangue podia brindar: o homem continua preso!
O problema Carlos Cruz, por agora e durante algumas semanas, está resolvido. O que não significa que o processo esteja destinado à condenação certa deste ou de outro arguidos.
A única certeza que tenho é que este é um processo condenado ao fracasso. Não afirmo isto pelo que dele se sabe, mas sobretudo pelo que se sabe, e assiste, num processo idêntico a ocorrer nos Açores. É a diferença entre a vergonha e a dignidade, entre o que de mais perverso pode existir nos meandros da inquisição dos novos tempos e a competência judiciária ágil do outro.
Conheço isto há anos demais para não ser necessário perder tempo para compreender as hesitações de Rui Teixera, a pressa afogueada de uma investigação nervosa que está seguramente cheia de erros grosseiros, ditada pela intencionalidade das convicções e pouco permeável ao vigor da prova criminal. Basta saber que há testemunhas ouvidas dezassete vezes para se adivinhar que a tão celebrada preocupação com a debilidade psicológica das testemunhas não passa de uma cortina de fumo. Debilidade para a defesa as ouvir, carregar no pedal quando se trata de procurar construir uma história feita de intenções.
Basta saber que no tal álbum das fotografias está a figura de um cardeal, sem que haja notícias de bispos ou cónegos envolvidos neste escândalo para se perceber que se torna suspeito quem critica esta coisa sem pés nem cabeça persistindo em ignorar os verdadeiros suspeitos. Não tenho dúvidas de que todos aqueles que de uma forma ou de outra criticaram este processo estão nesse tal álbum. É uma prática recorrente. Conhecida desde os autos de fé da Idade Média.
A este modelo medonho de investigar e decidir tem-se oposto a rapidez, o passo rijo, a determinação no processo dos Açores. Como já aqui escrevi, o problema pode ser das leis mas é sobretudo dos homens que a aplicam.
Mas também é verdade que sabemos pouco sobre tudo. Apenas uma ou outra notícia nos jornais. Mas iremos saber. Este segredo de Justiça não vai durar muito mais tempo e depois veremos o que aí vem. Porque desenganem-se aqueles que julgam que isto tem a ver com poderosos e não poderosos. Daqueles que bebem cegamente como verdades absolutas o que é dito pela acusação, dos outros que fizeram acto de fé em todas as inocências e dos muito poucos que têm o atrevimento de não acreditar na perfeição das leis e dos homens e questionam criticamente a vida, os homens, as instituições, procurando-lhe o fundo moral.
Reconheço que é mais fácil estar pró ou contra. Não obriga a pensar. Apenas a aceitar a verdade do acusador ou da defesa. É o reflexo do país preguiçoso que herdámos e que iremos entregar aos nossos filhos. Mas também é verdade que o sistema judiciário, pesem as graves falhas, deficiências e distorções é, ainda, um palco de lucidez e não um antro alargado de manhosos. E um dia iremos ver. Como S. Tomé. E saber quem merece estar na cadeia. Se os que agora são bons ou aqueles que agora são os maus.
Resta esperar. Como se esta semana inventada pela comoção artificial não tivesse existido. Porque não seria a libertação de Carlos Cruz que resolveria em definitivo aquilo que se suspeita existir como um tumor dentro de um processo cujo propósito é saber a verdade. Só o julgamento mostrará quem são os bons e os maus nesta história. Até lá, aguardemos com fé que este país é qualquer coisa mais do que um sítio mal frequentado

 

A LISTA

Mas o que é dramático é ser o próprio PGR a caucionar esta situação, desculpando isto como critério policial

Correio da Manhã - 07 Março 2004

Por: Francisco Moita flores

'O Independente' publicou a lista de fotografias que o MP, e o séquito da PJ que o coadjuva, decidiu mostrar aos rapazes que a partir da Casa Pia foram escolhendo segundo o menu que lhes foi apresentado quem era quem no processo em curso. É um documento notável, que merece a divulgação que teve, porque revela o estado de insanidade a que esta investigação conduziu homens e mulheres de quem se esperava a operacionalidade judiciária e não esta prova grotesca.
Vários analistas quiseram saber qual o critério para que constassem estes nomes e não outros e o senhor Procurador-Geral admitiu evasivamente que foram critérios policiais que montaram aquela coisa.
Os chefes sindicais do MP e dos Juízes vieram defender a lista como um acto legal e que a sua publicação visava descredibilizar o processo porque fora um acto legal. Os senhores magistrados confundem forma e conteúdo e já não conseguem perceber que quem descredibiliza o processo é quem faz aleatoriamente uma lista para estigmatizar pessoas alheias àquelas andanças. Mas vejamos mais de perto.
Não vale a pena procurar critério para a inclusão daquelas fotografias e não outras. Porque simplesmente não existe critério. Porque se o critério fosse nomes relatados, com verdade ou falsidade, pelos rapazes, então estariam ali todos os nomes que eles disseram ter violado e não estaria a maior parte daqueles que lá estão. Porque se o critério fosse procurar um cardeal ou um bispo não estaria ali a fotografia de um prelado mas de uma série deles mais ou menos parecidos. Porque se o critério fosse a popularidade, estariam na lista muitos que lá não se encontram e não estariam alguns dos que ali foram metidos à força. Porque se o critério fosse a procura de políticos não se deixava de fora o Partido Comunista. Porque se o critério fossem os amigos dos arguidos não ficariam tantos de fora. Porque se o critério fossem jogadores de futebol não se encontrariam só jogadores do Benfica. Porque se o critério fosse a procura de barbudos não se encontrariam tantos com cara nua e vice-versa. Porque se o critério fosse procurar jornalistas não estariam ali apenas aqueles que criticaram o processo.
Porque se o critério fosse sério nada disto tinha acontecido.
O que aquela lista mostra, ainda por cima sem surpresa, é aquilo que eu já adivinhara há mais de um mês quando aqui mesmo escrevi, a propósito das primeiras fotografias publicadas, que não me admirava nada que surgissem as caras de quem criticou, desconfiou, manifestou reserva sobre a seriedade, o profissionalismo com que este caso estava a ser investigado. É um puro exercício de tiro ao alvo. Saem desta ofensa duas conclusões claras. A primeira é que se desejou urdir um golpe contra o sistema democrático. A rebelião judicial contra o poder que tanto se apregoou, estava ali. Não pela via económico-financeira como em Itália, mas pela via de uma pretensa moral sexual. A segunda ordem de motivos está na grosseria pura e simples de misturar gente que os autores do álbum detestam, odeiam ou apenas quiseram ofender por prazer com reais intenções profissionais. Não se encontra outra explicação.
Mas o que é dramático é ser o próprio PGR a caucionar esta situação, desculpando isto como critério policial. Não há critérios policiais e judiciais. Em investigação criminal só existem critérios legais. A Polícia sem lei é sempre tropa de choque de qualquer poder tirânico.
O senhor Procurador-Geral da República não se pode refugiar nessa explicação fugidia. Foi ele próprio que assumiu a excelência desta investigação. Portanto, explique-a. Explique porque é sua obrigação legal e moral. Está-lhe confiada a nobre função de ser o vigilante do respeito pela lei. Ou então que faça aquilo que deve fazer: demitir-se.

36. Henrique Monteiro - Ex Sub Director e Actual Director do Jornal Expresso desde Jan 2006

«A TVI está à cabeça deste processo com coisas absolutamente lamentáveis. Não é para informar, é para criar emoção.»

Henrique Monteiro, 13/01/2004, Sic Noticias

 


Expresso - 18/10/2003

Por: Henrique Monteiro

Direitos individuais

UMA pequena notícia no «DN» dá-nos conta de que uma fonte ligada à investigação do processo Casa Pia está preocupada. Porquê? Porque, doravante, será mais difícil investigar, por culpa do Tribunal Constitucional. Porquê? Porque aquele tribunal determinou (e cita-se esta parte, que no «DN» é também citada) «o primado do direito do arguido sobre o direito da comunidade». Pronto! Está tudo esclarecido!

Uma ressalva para afirmar que apenas a crença na probidade do jornalista José Pedro Fonseca, que assina a notícia, me leva a acreditar que a fonte é mesmo ligada à investigação. E, apesar de mandar a ética jornalista (embora com pouco sucesso, concedo), que não se atribuam opiniões a fontes anónimas, espero, ainda, que esta fonte, a ser verdadeira, não seja jurista. Seja apenas a de um trabalhador braçal ligado à investigação - motorista de um procurador ou ajudante de um inspector da PJ. Ou que, sendo jurista, as suas opiniões não sejam levadas em conta. Porque - meu Deus! - se é este o pensamento da investigação, então mude-se rapidamente de investigadores! A tenebrosa Tcheca não diria melhor: os direitos da comunidade a prevalecer sobre os direitos individuais? Estamos perdidos! A Justiça torna-se uma questão de maiorias, de preferências?

Não sei se o director do «Público» leu aquela notícia, mas o certo é que, no dia seguinte, recordou que Sócrates foi condenado à morte por uma assembleia popular em Atenas (José Manuel Fernandes escreve Grécia, mas como não é historiador deve ser perdoado). É, pois, um caso em que, bem a gosto da investigação portuguesa, o direito da comunidade prevaleceu sobre o direito individual.

Só que, de então para cá, passaram 2500 anos. E as sociedades liberais e democráticas entenderam que os direitos individuais são invioláveis e iguais para todos. Não há direito da comunidade acima disto, porque qualquer direito individual é limitado pelo direito dos outros indivíduos.

Claro que, habilmente, a investigação - pelo menos, na citação em causa - não lhe chama direito individual, mas direito do arguido. É um truquezinho mal-jeitoso. Um arguido é, curiosamente, um indivíduo e um cidadão. E os seus direitos devem ser reivindicados quando deles mais precisa. Não vale a pena a quem não é atacado clamar por direitos de defesa, como facilmente se compreenderá.

Poderemos sempre adoptar processos muito simples para colocar os direitos da comunidade bem acima dos direitos dos indivíduos: quotas de criminosos, tortura, ostracismo, prisão de familiares, etc., como as ditaduras de direita e de esquerda faziam e fazem.

Mas terá alguém saudades desse tempo?

 

 

Expresso - 29/11/2003

Por: Henrique Monteiro

A política do juiz 

HÁ UMA pequena frase, na entrevista que o juiz Rui Teixeira concedeu à Rádio Renascença e ao «Público», que é muito reveladora do pensamento daquele magistrado. Quando defende que a Polícia Judiciária esteja na dependência do Ministério Público, acrescenta «e não do poder político». Embora não o expresse abertamente, para Rui Teixeira haveria duas vantagens em a PJ passar para a dependência do MP: uma, é da ordem da eficácia; outra, é porque deixaria de estar sujeita ao poder político.

Rui Teixeira não desconhecerá que as sociedades liberais e democráticas assentam, entre outros aspectos, no equilíbrio de poderes. No facto de cada poder ser limitado por outros, de nenhum poder ser excessivo. Por outro lado, o poder alicerça-se na legitimidade que lhe é conferida pelos cidadãos, pelo que o poder político - único a quem essa legitimidade é directa e regularmente conferida pelo povo - é o mais legítimo dos poderes e o único que possibilita uma escolha partilhada sobre as pessoas que vão governar o Estado. Não é perfeito, longe disso, mas todas as tentativas de o substituir por outro tipo de regimes, desde os corporativos, aos ditatoriais, passando pelas chamadas repúblicas de juízes, se revelaram piores. E por motivos simples: menos livres, mais corruptos, mais despóticos. Em suma, citando o grande e irónico Winston S. Churchill, a democracia é o pior dos regimes, se exceptuarmos todos os outros.

Não se entende, pois, este tipo de ressalvas de Rui Teixeira ao poder político, como se a política fosse algo menor, uma coisa pouco digna. No mesmo sentido já foram proferidas algumas palavras por Souto de Moura, a propósito da igualdade da lei para políticos.

Estas palavras são perigosas e os senhores magistrados não o podem desconhecer. Não podem fingir ignorar que, na maior parte dos países democráticos, com sistemas de justiça que funcionam bem melhor do que o nosso, os próprios ministérios públicos (ou equivalentes) dependem do poder político.

Não podem igualmente fingir que tudo o que depende organicamente de um Ministério está contaminado pelo poder político. A questão é muito menos complexa e pode resumir-se assim: o Estado tem o dever de administrar a Justiça e quem ganha eleições tem o dever de administrar o Estado, de acordo com as regras e leis previamente estabelecidas.

Se o juiz Rui Teixeira, ou outros magistrados, pretendem mudar isto e fazer uma lei, segundo a qual deve administrar o Estado quem tiver o curso de Centro de Estudos Judiciários, tem um longo caminho a percorrer. Vá para a política e defenda a sua ideia. Porque nunca o deve fazer enquanto magistrado.

É que alguns senhores magistrados, quando falam com esta distância (e superioridade) do poder político, não andam a fazer outra coisa senão política. Com a vantagem de que não vão a votos, pelo que não lhes podemos dizer: senhor Rui Teixeira, demita-se!

 

Expresso - 03/01/2004

Por: Henrique Monteiro

O que eles dizem

ADELINO Granja, um dos ex-casapianos com papel de destaque no processo da pedofilia, veio ontem, no «Correio da Manhã», afirmar uma coisa que muitos já tinham notado: «Acho estranho que só estejam a vir a público nomes relacionados com o Partido Socialista».

É natural que Granja considere estranha essa ligação persistente entre os notáveis do PS e a pedofilia. Já não chegava Paulo Pedroso (o único verdadeiramente acusado pelo Ministério Público), o próprio secretário-geral, Ferro Rodrigues, e o mais experiente estadista do PS, Jaime Gama, para, um dia depois, se juntarem, numa alucinante tragicomédia de mentiras e cobardes anonimatos, os nomes do comissário europeu António Vitorino e do próprio Presidente da República, Jorge Sampaio.

É certo que as pessoas atentas e bem informadas sabem que verdadeiramente acusado está apenas Paulo Pedroso. Mas este é, curiosamente, o único que ainda se pode defender e limpar a lama que o atingiu. Os outros, nem essa oportunidade terão: ou são referidos por «anónimos» ou mencionados no processo, com o seu nome acompanhado da informação de que o crime de que poderiam ser acusados já prescreveu.

Ora o problema é que um crime prescreve, mas o mesmo não se passa com a honra de uma pessoa.

O advogado Adelino Granja notou, pois, que só andavam a ser carreados para a praça pública nomes de socialistas. E, mostrando-se preocupado, e com razão, o que fez ele? Trouxe à baila a insinuação de que também havia sociais-democratas. E até membros deste Governo referidos pelos rapazes da Casa Pia (embora em caso também já prescrito). De pormenor em pormenor, chega a afirmar que ele próprio e Pedro Namora disso informaram o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) e o primeiro-ministro. Durão Barroso, porém, não os quis ouvir e mandou-os para as autoridades competentes.

Aqui vemos como, nas pequenas cabeças de alguma gente, se resolve um problema: há nomes a mais do PS? Arranjam-se alguns do PSD, para equilibrar. Mesmo que a arma seja da mesma apurada vileza! Quando compreenderão que o que está aqui em causa não são as cores políticas, mas a dignidade de seres humanos? Quando acabarão as insinuações?

 

 

Expresso - 06/09/2008

Por: Henrique Monteiro

O 'erro grosseiro' de um juiz

Desde que o chamado processo Casa Pia se iniciou manifestei sempre muitas reservas quanto à sua condução.

Nunca me pareceu normal o modo como as investigações avançaram nem a forma leviana como foram efectuados reconhecimentos ou decididas prisões.

Recordo que pouco depois da prisão de Carlos Silvino ('Bibi'), houve uma perseguição pela auto-estrada a Carlos Cruz, argumentando-se que ele ia fugir. Essa notícia correu a Comunicação Social. Hoje, quando Carlos Cruz ainda não sabe o resultado do julgamento e já podia ter fugido 1000 vezes, alguém acredita que isso fosse verdade? Mas o juiz Rui Teixeira acreditou e deteve-o. Como acreditou que Paulo Pedroso teria de ser detido no Parlamento; como acreditou em quase tudo o que o Ministério Público e os investigadores da Polícia Judiciária lhe transmitiram. Se o fez ou não de boa fé, não o sei, mas creio, ainda assim, que o terá feito sem dolo.

Dizia alguém que, quando todos estão do mesmo lado da amurada de um barco, se deve ir para o outro, para equilibrar. Agora que Rui Teixeira - que eu tanto critiquei por achar inacreditável o rumo do processo - é dado como bode expiatório, lembro muitos outros que não só subscreveram inteiramente o seu 'erro grosseiro' como pela sua acção o agravaram.

O procurador João Guerra, por exemplo. Os inspectores da PJ Rosa Mota e Dias André. Os 'especialistas' Catalina Pestana ou Pedro Strecht. Os comentadores de serviço, como Pedro Namora. A maioria dos órgãos de Comunicação Social.

Todos eles estariam, eventualmente de boa fé. Mas nenhum deles procedeu bem, nenhum deles contribuiu o que quer que fosse para descobrir os verdadeiros culpados da vergonha que foi (ainda é?) a Casa Pia. Porque - não o esqueço - por cada inocente que foi inculpado há também, provavelmente, um verdadeiro culpado em liberdade. E são os verdadeiros culpados - não os fictícios, como Paulo Pedroso, que foram indiciados não se sabe porquê - que toda a sociedade deveria estar mobilizada para descobrir.

Não foi esse o caminho que escolheu a PJ, nem a PGR e o seu então chefe Souto Moura. Nem o magistrado Rui Teixeira, que deveria ser o garante de toda a legalidade e toda a prudência que se impõem num processo desta natureza.

O 'erro grosseiro' de Rui Teixeira será uma nódoa na sua carreira. Mas para ele contribuíram muitos outros (conjugados ou não) que, na altura, o incensaram e o incentivaram e que agora o deixarão sozinho arcar com todas as culpas.

22. Maria João Fialho Gouveia - Jornalista

Três Cartas de Maria João Fialho Gouveia para o site Reporter X, entretanto extinto

Este Carlos que eu conheço

Existe um homem por detrás do mito. Integro, humano, solidário, carinhoso, emotivo. É com esse Carlos, de apelido Cruz, que privo desde pequena.

Explicar a dor e o sofrimento que a prisão de alguém que nos é querido nos inflige, é uma tarefa algo complexa. Sempre que um familiar ou amigo fica detido, ficamo-lo todos um pouco com ele também. Quando o Carlos foi calado, ficámos amordaçados; quando o despiram e humilharam, chorámos amargamente o seu enxovalho. Era a certeza da sua inocência e a nobreza do seu carácter que nos mantinha cada vez mais unidos e activos na sua defesa, já que publicamente, também, ele fora vilipendiado.

Há momentos na vida que as palavras não descrevem. Este foi um deles: o regresso a casa de um velho amigo, após 15 meses de prisão. Os nervos tomavam-nos. Havia tanta coisa por dizer, tanta vontade de o abraçar e de lhe derramar a confusão de emoções que nos ia na alma! Quando ele, finalmente, chegou a casa, as lágrimas confundiram-se com os aplausos, mas, desta feita, não era um feito profissional que enaltecíamos e sim a sua coragem de enfrentar um mundo de acusações absurdas e pesadas sem nada poder fazer em sua defesa. Nunca vou esquecer a imagem do doce casal sentado num só sofá individual com a pequenina ao colo, aproveitando a benção da proximidade e de poderem sorrir e tocar-se sem medos, sem pressas, e sem estarem a ser vigiados. Guardo esses gestos de ternura como uma lição de vida, de luta pela liberdade e do valor dos sentimentos. Envaidece-me a dignidade e a serenidade  com que Carlos palmilhou mais esta etapa: aliviado, mas sem excessos. Não houve um amigo que lhe ligasse a quem não agradecesse o apoio e chegou mesmo a vibrar com o golo do Porto no jogo que prepara o terreno para o campeonato que ele trouxe a Portugal: o Euro 2004.

Sim, Carlos é o nome deste meu amigo, e a nossa história remonta aos anos 60. Íntimo dos meus pais, era visita frequente da nossa casa e nós da sua. Eu era a sua "Joãozinho". Mas os anos foram passando e com eles veio o Maria João, a terceira pessoa e a ausência de anedotas brejeiras ao pé da "menina bonita", como o meu Carlos me chamava. Chegou então a fase dos programas esboçados, em que a criatividade e o riso tomavam conta do espaço; as patuscadas nas casas, ora do Fialho, ora do Cruz, com o Martim pequenino e o meu irmão Zé a correrem pelo jardim. Depois, vieram as doenças: o meu pai foi submetido a várias intervenções cirúrgicas (sempre contando com o apoio incondicional afectivo e financeiro do Carlos), e o Carlos lutou contra um cancro. A Marta era ainda uma menina quando um dia me telefonou a chorar porque os pais se iam separar. Lembro-me do Carlos entrar em depressão por se ver obrigado a dispensar funcionários, tendo contraído um empréstimo pessoal para lhes pagar; recordo o divórcio de duas pessoas que ainda se amavam e depois do aparecimento de um anjo na sua vida.

Revejo cada memória como quem vira as páginas de um álbum de família e aos vê-las se enternece e desenterra sensações. O meu irmão mais velho, "o artista", como o Carlos lhe chama, fez parte da equipa técnica do "1,2,3" e também eu trabalhei sob a sua batuta na CCA, em que o Carlos conseguira ressuscitar um pouco do espírito de camaradagem que caracterizara a pioneira RTP, acompanhando a equipa a todo o lado - hierarquias aparte - e jubilando com as nossas pequenas conquistas. Sempre me perguntei onde é que ele arranjava tempo para dormir! Na realidade, eu não conheço o Carlos Cruz da televisão, o comunicador; conheço o homem por detrás do nome; o ser humano por detrás do mito; o amigo. Acredito nessa pessoa que me viu crescer, que me deu ânimo quando a minha mãe esteve doente, e que foi sempre o tio amoroso das prudentes opiniões.

Agora, juntos, saboreámos um momento de paz antes da próxima batalha. Há ainda um longo e moroso caminho a percorrer na senda da verdade, muito solo por revolver, mágoas por sarar e teias por destrinçar, mas verdade triunfará, doa a quem doer. A pedofilia não se resolve com verdades distorcidas nem bodes expiatórios. Violar uma criança é matá-la um pouco; tal como acusar um inocente de crime tão hediondo e julgá-lo na praça pública, é condená-lo a uma morte em vida. O problema deste país é que todos se acham juizes e Carlos Cruz foi uma das vítimas deste imenso tribunal, violentado pela justiça, pelos media e pelo seu povo, por ter cometido o pecado de ser figura pública.

Maria João Fialho Gouveia
[21.06.2004 18:51 - ]

Quo vadis, Lusitanos?

"A Minha Pátria" é bela e uma emotiva obra do compositor checoslovaco Friedrich Smetana. Torna-se particularmente tocante o segundo quadro deste seu poema sinfónico - Vltava - deste legado musical, que transforma esse afluente do Elba num símbolo daquele país, pela nostalgia patriótica que desperta no ouvinte, seja qual for a sua nação. É nos acordes de Smetana, curiosamente, que regresso, vez após vez e inevitavelmente, ao meu sentimento patriota e me sinto abraçar as cores da minha bandeira, ainda que hoje viva entristecida com o berço da minha nacionalidade.

Há 30 anos um golpe de estado militar punha fim a quase 50 anos de ditadura e devolvia a democracia a Portugal. Hoje, três décadas passadas, o poder judicial persiste na máxima "orgulhosamente sós" e deseja permanecer impune a falhas e interferências externas ao seu corporativismo medieval. Que país é este? Coloca-se meia dúzia de nomes sonantes atrás das grades e deduz-se que a justiça, finalmente, é igual para todos? E os verdadeiros poderosos cujos nomes nem sequer foram mencionados neste processo?

E aqueles cuja simples menção foi mandada truncar nas páginas do mesmo pelas autoridades judiciais? O que me parece evidente é que os famosos passaram foi a ser alvo das mesmas injustiças de que muitos anónimos são, e não ao contrário. Ou seja, a injustiça passou a ser igual para todos! Ora, parabéns pela conquista social! E os "heróis do mar" erguem-se pomposa e furiosamente em nome de uma causa que chamam sua e contra certos Adamastores que se lhes afiguram ideais e cospem acusações gravosas como se fossem senhores da verdade e tivessem estudado leis anos a fio! Mais cego é o que não quer ver do que aquele que não vê...


Em nome de quem sofreu as agruras do fascismo e de quem pela liberdade bravamente lutou, abram os olhos, lusitanos! Questionem! Façam perguntas! Tais como: porque é que nunca foram investigadas as inúmeras chamadas telefónicas feitas por Carlos Silvino no período em que já estava sob escuta? Porque nunca foram estas divulgadas, tão pouco os nomes das pessoas a quem se destinavam? Que nomes eram esses que não interessa denunciar? Porque é que nunca foram realizadas buscas à casa de Carlos Cruz? Não se procuravam evidências dos crimes?

Ou não interessava encontrar negação dos mesmos? Porque é que se ordenou omitir nos relatórios oficiais que a célebre casa de Elvas era contígua da do tio de um membro do actual governo? Porque é que os jornalistas não investigam? Porque é que se fala em pressão sobre a justiça quando feita do lado dos arguidos e nunca do lado da acusação?

Porque é que um jantar ou uma reunião de solidariedade em nome de Carlos Cruz, que os seus amigos consideravam detido injustamente, é tida como pressão e a marcha branca, ou uma certa ida ao Parlamento após a libertação de Paulo Pedroso- em que são proclamados culpados aqueles que a justiça continuar ainda a ter como inocentes, até culpa provada - não? Porque é que o nome de alguns destes apoiantes de Cruz foi mencionado, de imediato, pelo Tribunal da Relação como pedófilos comprovados?

Porque é que a família de Cruz perdeu negócios? Porque é que os seus familiares e amigos foram alvos de perseguição? Porque é que o nome de Marcelo Rebelo de Sousa e o de um jornalista de investigação foram acrescentados ao processo, a determinada altura? Será porque tomaram um partido que não interessava a certas entidades?


Porque é que nunca foi investigado e tornado público o fundamento das queixas contra a TVI que davam conta do seu envolvimento neste escândalo, coagindo e pagando a testemunhas para denunciar alguns nomes? Qual é a cor política de Manuela Moura Guedes? Porque é que, enquanto pivô, tomou claramente uma posição neste processo, fazendo questão de manifestar a sua opinião pessoal, em vez de apenas relatar as notícias? E porque é que, sempre que algo no mesmo não lhe corria de feição, se afastou?

Porque é que Felícia Cabrita foi arrolada como testemunha de acusação? Quais os métodos por esta utilizados para aferir a credibilidade de testemunhas? Quem é Felícia?

Quem é João Guerra?
Quem é Rui Teixeira? Como é que se processam as promoções dentro do Ministério Público?
Quem é Dias André?
Quem é Rosa Mota?

Quem é Pedro Namora? Qual a sua cor política e os princípios que advogam? Quais os compadrios que une estes protagonistas da acusação? Porque é que Catalina Pestana foi escolhida para provedora da Casa Pia por Bagão Félix? Porque é que esta negou as suas próprias palavras, de que "havia miúdos a ser pagos para mentir"? Porque é que esta não faz público que insta alunas a praticar abortos?

Porque é que se acenou a certas testemunhas com indemnizações muito antes do determinar da culpa dos arguidos? Porque é que se negou o passado de algumas destas testemunhas?
Porque é que dois dos advogados de acusação, José Proença de Carvalho e João Moreira, abandonaram o processo? Porque é que "as crianças não mentem" ao dizer que foram abusadas, mas podem mentir a psicólogos e às demais autoridades sem que crédito lhes seja retirado?


Porque é que Rui Teixeira considerou certo tipo de provas válidas para um arguido e não para outro? Porque é que "Bibi" passa de monstro a "pobre coitado" e os seus alegados crimes, por ser pobre e casapiano, são desculpados por parte da acusação e mesmo por certos media - que tomaram partido desde o início - e levam consigo a opinião de um povo? Quem é que, na realidade, detém o poder? E, finalmente, quem prestaria atenção ao caso Casa Pia se nele não tivesse sido envolvido o nome de Carlos Cruz e de Paulo Pedroso?


A verdade é que a pedofilia é um crime tão hediondo que as pessoas quiseram encontrar alguém concreto em quem descarregar a sua raiva. E quem melhor em quem o fazer do que no apresentador de televisão mais mediático do país e num político do maior partido da oposição? Ou não são estes os dois arguidos que mais rancor despertam na opinião pública? Atiram areia para os olhos do "Zé" e o "Zé" deixa!


Ó gente da minha terra! Então e os capitães de Abril, os valentes que conquistaram a liberdade, por andam eles? Onde estão aqueles que empunharam a bandeira da justiça, da igualdade e da solidariedade? Também eu repudio o abuso de crianças. Agora, não aceito é cegamente os argumentos de um dos lados do tribunal - quero ouvir os dois, saber das suas incoerências e certezas quer da acusação, como da defesa; compará-los, analisá-los, imparcialmente, ver todas as minhas perguntas respondidas e então, sem receio da verdade, poder tomar em consciência uma posição. Deus me livre de julgar injustamente um cidadão! Para mais por tão horríveis actos! Mas o meu povo, aquele que na voz de Amália lavava no rio, decidiu-se pela culpa dos suspeitos mal soube dos seus nomes: eram grandes e bastava!

Em cada revelação que veio a lume e a conta-gotas e na comunicação social buscavam tudo o que pudesse justificar a decisão já por si tomada, e não a verdade. O veredicto, porém, já o resolveram os portugueses desde o despoletar deste processo: culpados! Por mais que se recorde que todos os suspeitos, até prova em contrário, devem ser considerados inocentes, Portugal já há muito que deliberou sobre a culpabilidade dos arguidos. Para tal contribuiu uma acusação composta pela Ministério Público, pelo juiz e pela grande maioria dos media. Tudo o que estes fizerem é heróico e justo; tal como tudo e todos que defenderem os arguidos é corrupto e digno de reprovação.


Assisto há 15 meses a um linchamento público dos arguidos do caso Casa Pia, em que se lança pedras sem apelo nem agravo a estes e aos que os rodeiam e dou por mim a recordar alguns tristes episódios da história mundial: A Inquisição, em que a simples suspeita lançada sobre alguém determinava a sua culpa, sem quem defesa lhe fosse permitida; a Revolução Francesa, em que se castigou cegamente e na praça pública quem o povo entendeu que o merecesse; ou o Holocausto, em que as pessoas eram perseguidas e excluídas socialmente pelo simples facto de serem judeus.

Pois eu digo, quem tiver assistido a algum dos crimes de que são acusados estes portugueses que atire a primeira pedra! Quem não assistiu, cale-se e procure os reais violadores de crianças, ou este tipo de crimes nunca cessará. Quem assim, sem certezas, julga um arguido, não só se torna cúmplice do crime da injustiça, como contribui para que aqueles que, na verdade, cometem abusos sobre crianças, o continuem a fazer. Quo vadis, lusitanos?

Maria João Fialho Gouveia

[21.06.2004 18:46 - ]

A lusitana paixão

A lusitana paixão corre nas minhas veias. É lusitano o meu sangue quente. É lusitano o meu romantismo. É lusitana a única palavra de que não conheço tradução: a saudade. É lusitana a minha ânsia de liberdade. É lusitano o meu amor pela poesia, pelos clássicos do Eça de Queirós e pelo estilo manuelino.

É lusitano o meu encanto por este pequeno país. São lusitanas as minhas origens. É lusitano o meu povo. É lusitana a minha língua. É lusitana a minha bandeira. E é lusitano o meu maior desgosto: os lusitanos. Hoje, amargo o facto de ser lusitana. Zanguei-me com a minha nação pela sua sede de "sangue", pelo seu desejo sádico de ver gente no banco dos réus, independentemente da sua culpa ou não.

Zanguei-me com a minha pátria por saber de crianças cujos abusos sexuais foram usados para esconder o pecado de uma instituição do Estado permitir crimes tão hediondos que só recorrendo a um cordeiro sacrificial pode continuar a ocultar a sua existência dentro dos seus muros, onde era suposto os meninos estarem seguros.

Zanguei-me com a terra porque vi gente ser perseguida e julgada sem provas. Pior. Zanguei-me com Portugal porque o que convenceu os lusitanos da sua culpa foram dois factores: O facto de serem figuras públicas (assim a justiça seria igual para todos) e a infalibilidade da justiça. Zanguei-me com a Lusitânia porque Salazar caíu da cadeira, mas outros poderes a ela se agarram com unhas e dentes. Zanguei-me com a minha pátria ao ponto de não ter prestado atenção aos primeiros jogos do Euro 2004, mas acabei por prender a nossa bandeira na minha janela por respeito aos homens que lutaram por o trazer para Portugal e pela selecção nacional.

Não ganhámos, mas chegámos onde nunca tínhamos chegado: obrigada, Carlos Cruz! Mas continuo entristecida com Portugal. Dizem que quem defende o mentor do campeonato se esconde atrás de nomes falsos. Ofendem-nos. Perseguem-nos pelo simples facto de acreditarmos nele. Que edificante, lusitanos! Ora, se necessário for, dou a outra face, porque com ele eu e os meus irmãos crescemos e ele nunca nos tocou nem desrespeitou. Já a justiça, essa instituição que se diz superior, é feita de homens. De outros lusitanos.

Deter um cidadão famosos e mantê-lo preso durante ano e meio é tão grave, que, num corporativismo medieval, os protagonistas de tais actos se unem e encobrem uns aos outros para que A VERDADE PERMANEÇA PRESA. Antes queimar a imagem de Carlos Cruz do que a credibilidade dos agentes judiciais, que agem de cara tapada e pela calada, arranjando parceiros duvidosos na sua cruzada de combater não o mal, mas quem os queira denunciar, a qualquer custo.

Eu não me escondo. Não ajo pela calada. Não falo com voz distorcida. Não tapo o rosto. Por dois motivos: porque a inocência e a verdade não causam medo e porque sou, meus caros, lusitana! Eu tenho um nome, lusitano, por sinal. Defendo um homem que usa o seu nome verdadeiro, lusitano, por sinal. E jubilei pela bandeira lusitana, deste recanto à beira-mar, com que me zanguei, por respeito a esse lusitano.

É que foi com lusitana paixão que Carlos Cruz trouxe o Euro 2004 para Portugal. Com lusitana paixão aqui pretende viver para esclarecer a verdade sobre si e sobre os verdadeiros culpados deste processo e para poder continuar a ser o que sempre foi: lusitano! É que a lusitana paixão existe, sim; os cartões vermelhos a quem a corrompe, é que são escassos. É por serem vermelhos - os cartões...

Maria João Fialho Gouveia

[06.07.2004 07:29 - ]

21. José Niza - Compositor, Autor, Psiquiatra e Ex-Deputado


O MEU AMIGO CARLOS CRUZ

Jornal O Mirante - 27.02.2003

Por: José Niza

Ao assistir diariamente nas televisões e nos jornais à delirante invenção de notícias, especulações e insinuações, sinto-me envergonhado por ter ajudado a construir este "simulacro" de democracia mediática em que a ética e a deontologia dos jornalistas é sacrificada ao lucro fácil das vendas de jornais e das audiências dos telejornais
Acredito convictamente na inocência completa do Carlos Cruz, de quem sou amigo há mais de 30 anos. E quando publicamente venho afirmá-lo, agora que o calor das emoções se vai esbatendo, não é por qualquer dever de amizade ou solidariedade, mas por convicção profunda e reflectida.
Conhecendo o Carlos Cruz como o conheço desde 1969, quando ele fazia o "Zip Zip" e ficámos amigos, nunca encontrei na sua personalidade, nos seus comportamentos, nos seus hábitos de vida, qualquer vestígio, indício ou sinal daquilo de que o acusam. E faço-o, não só como amigo, mas também à luz de uma experiência psiquiátrica que não posso deixar de ter em conta.
Acontece que, simultaneamente, também confio na justiça. Isto é, tenho de confiar, mesmo que saiba que os tribunais estão cheios de erros e injustiças judiciárias.
Ainda recentemente nos Estados Unidos da América, e por essa razão, foram amnistiados muitos condenados à pena de morte.
Desconheço - como o próprio Carlos Cruz e o seu advogado - quais as acusações concretas que lhe são imputadas. Como cidadão, recuso-me a aceitar que uma qualquer pessoa possa ser metida na prisão sem que lhe seja comunicada a razão da detenção e os motivos da mesma. Como pode um cidadão defender-se se não conhece os motivos e os factos pelos quais é acusado?
O que mais me tem amargurado, mais até do que eu julgaria em mim ser possível, é que, no desfecho desta situação, nunca haverá um final feliz.
Carlos Cruz é um homem de forte têmpera, mas tudo aquilo de que ele e a sua família tem sido alvo, designadamente por parte dos abutres de alguma comunicação social, será irrecuperável. Sempre lutei contra a censura, nos tempos difíceis da ditadura. Mas, hoje, ao assistir diariamente nas televisões e nos jornais à delirante invenção de notícias, especulações e insinuações, sinto-me envergonhado por ter ajudado a construir este "simulacro" de democracia mediática em que a ética e a deontologia dos jornalistas é sacrificada ao lucro fácil das vendas de jornais e das audiências dos telejornais. Uma coisa é a liberdade de imprensa e jornalismo de investigação. Outra coisa é libertinagem, mentira, manipulação, ao abrigo dessa mesma liberdade.
E, neste infame contexto, onde estão os poderes democráticos instituídos? Onde está a Comissão dos Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República? Onde está a Alta Autoridade para a Comunicação Social? Onde está o Sindicato dos Jornalistas?
Quem cala, consente.
Preocupa-me também a eventualidade de uma acusação inconsistente, não sustentada em provas irrefutáveis e definitivas. A acontecer isso, e em presença da dimensão e comoção nacional que este caso assumiu, isso seria o fim da credibilidade do nosso sistema judicial, um autêntico "crash" da justiça portuguesa de consequências imprevisíveis.
Da mesma forma que convictamente acredito na inocência de Carlos Cruz, também, como cidadão, exijo que a justiça funcione e esclareça o acusado, o seu advogado, e o país, sobre a consistência das provas que legitimarão esta prisão preventiva. Porque, se toda essa acusação se resumir a "indícios", mesmo que "fortes", estaremos confrontados com um processo que me dispenso de classificar.

2. Barra da Costa - Ex PJ, Professor Universitário, Escritor e Criminologista

"Casa Pia" considerado um processo de mentira

Barra da Costa critica o mais mediático caso de crime sexual Criminalista diz que houve confusão entre investigação e protagonismo 

Jornal de Notícias - 29.01.06

Por: Paula Gonçalves

A forma como o processo "Casa Pia" tem vindo a decorrer levou, ontem, o criminalista Barra da Costa a considerá-lo "um processo de mentira", durante um debate sobre crimes sexuais, que decorreu em Coimbra. Após várias sessões de julgamento, concretizou o especialista, ao JN, "chegamos à conclusão que os factos que deveriam ter sido apurados não foram devidamente investigados", ou que "deveriam ter sido feitas buscas que não foram realizadas".

A questão foi abordada num simpósio organizado pela Associação Central de Psicologia, na sequência de uma pergunta (a propósito desse caso) sobre se as crianças mentem. Barra da Costa não tem dúvidas "Claro que as crianças mentem e os adultos que dizem que isso não acontece estão a mentir", apesar de considerar que, se uma criança for interrogada de "forma competente", o seu depoimento não é menos digno que o de um adulto.

Para Barra da Costa o problema com o processo "Casa Pia" resulta de "uma confusão entre investigação criminal", que deveria ser "metódica e científica", e "protagonismo". Ao longo de todo o processo, "houve pessoas que quiseram ganhar protagonismo, acabando por se esquecer que a mentira tem a perna curta". O que "acaba por ressaltar no fim do processo são mais os aspectos marginais e a personalidade dos envolvidos do que a verdade dos factos".

A investigação criminal "sofre abalos", em sua opinião, "a partir do momento em que o Ministério Público entra na estratégia de se apoderar" do sistema de investigação, deixando os investigadores de fazer aquilo que costumavam fazer. Se, depois, "a investigação corre bem, foi supervisionada pelo Ministério Público; quando corre mal, foi a Polícia Judiciária que não a conduziu bem".

Neste simpósio, em que participaram especialistas de diversas áreas, Carlos Farinha (director adjunto da PJ) acentuou o facto deste tipo de criminalidade se caracterizar pela existência de cifras negras. "O sistema conhece apenas uma parte do que acontece", defendendo, por isso, uma actividade "pró-activa" da parte das instituições. 

3. Artur Pereira - Ex Director da Directoria de Lisboa da PJ

Jornal de Notícias - 27.06.2004

Por: Carlos Tomás e Tânia Laranjo

A Polícia Judiciária alertou a Procuradoria-Geral da República para o facto de não existirem provas suficientes para proceder às detenções do apresentador de televisão Carlos Cruz e do médico Ferreira Dinis. Num documento entregue na secretaria da Procuradoria-Geral, logo após as prisões dos dois arguidos do processo de pedofilia na Casa Pia, Adelino Salvado avisou Souto de Moura para a fragilidade dos indícios existentes.
Antes das detenções, num relatório feito por Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, que tutelou, no início, a investigação - foi ele que interrogou, por exemplo, Teresa Costa Macedo, antiga secretária de Estado da Família, Felícia Cabrita, Pedro Namora e o alegado braço-direito de Carlos Silvino -, o próprio Adelino Salvado foi informado do ponto da situação da investigação e ficou a saber que nem sequer se tinham comprovado os suspostos contactos entre os arguidos.
Sem elementos de relevo
"Pese embora o facto de, antes das detenções, terem sido interceptadas linhas telefónicas respeitantes a pelo menos dois dos arguidos (Carlos Cruz e João Dinis), não foi colhido - tanto quanto nos foi informado pela coordenadora Rosa Mota - qualquer elemento de relevo. Por outro lado, e segundo a mesma fonte - a coordenadora -, eram desconhecidos alguns elementos essenciais e básicos em qualquer investigação e, nomeadamente nos autos em causa, como sejam as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização (mormente aquando das detenções de Carlos Cruz, Ferreira Dinis e Hugo Marçal) de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e análise dos próprios telemóveis", escreveu Artur Pereira no relatório que enviou ao seu responsável máximo.
Com base nessa informação, Adelino Salvado redigiu um segundo documento que mandou entregar na Procuradoria-Geral da República.E a conclusão da missiva é elucidativa: "Tudo visto e em resumo, afigurasse-se legítimo enformar as seguintes conclusões: desde o início sempre foi intenção do sr. procurador (João Guerra, procurador-adjunto do Ministério Público que dirigiu as investigações do processo de pedofilia na Casa Pia) afastar qualquer intervenção hierárquica da PJ e, aparentemente, também do Ministério Público, na investigação a decorrer."
E o director nacional da PJ vai mais longe: "Assim, reafirmando o desconhecimento sobre os termos em que evoluiu a investigação, será de manifestar a máxima inquietação pela forma como a mesma se encontra a ser conduzida, nomeadamente em sede de fundamentação probatória, tanto em relação aos arguidos detidos (na altura em que esta carta foi enviada a Souto Moura apenas Carlos Cruz e Ferreira Dinis), como a outros indivíduos já mencionados nos autos."

Detenções criticadas
Refira-se que as próprias detenções efectuadas pela equipa de Rosa Mota e Dias André (o inspector-chefe destacado para o caso) são também criticadas por Salvado. "Haverá que referir que a decisão de emissão e cumprimento de mandados foi de tal arte que se desconhecia quais as residências efectivas de Carlos Cruz e essa precipitação mais se acentuou quando o mesmo, ao sair dessa residência, não pôde ser interceptado porque os mandados ainda não se encontravam disponíveis". Cruz acabou por ser detido no Algarve.
Apesar de tudo, Souto Moura, manteve a confiança na equipa de procuradores que nomeou para a investigação. Os dois documentos em causa são internos e, por isso, nunca foram juntos aos autos do processo de pedofilia.  

4. Pinto da Costa - Médico-Legista ex INML

EFICÁCIA POSTA EM CAUSA

Correio da Manhã- 29.11.2003

O médico-legista Pinto da Costa manifestou ontem o seu cepticismo em relação à eficácia dos exames médico-legais efectuados aos arguidos, tendo em conta as circunstâncias do processo de pedofilia da Casa Pia. Segundo o médico, "os menores podem referir sinais físicos que soubessem, sem os ter observado, que coincidem com a perícia".

Estas perícias têm o objectivo de fazer uma descrição física do corpo do arguido, ou de uma parte concreta, para comparar com os testemunhos das alegadas vítimas, sendo que a confirmação de tais sinais, permite que sejam consideradas provas em tribunal. Segundo o 'site' Portugal Diário os peritos também conseguem saber se o agressor é impotente.

5. Conchero Carro - Universidade de Santiago de Compostela

Diário de Notícias - 10.01.2004

«A auto-estima de uma pessoa melhora se for violada por uma pessoa famosa». A afirmação foi proferida pelo psiquiatra Pio Abreu, ontem, na conferência internacional sobre «A procura da verdade nos casos de abuso sexual», realizada pela Universidade Lusíada, e gerou grande indignação na assistência. Mas a conferência foi ainda marcada pelas intervenções de uma psicóloga americana, Elizabeth Loftus, e o professor da Universidade de Santiago de Compostela.

Elizabeth Loftus alertou para o facto de «a memória humana defeituosa explicar mais de 80 por cento das condenações injustas», comentando esperar que esta realidade não se venha a verificar no processo de pedofilia da Casa Pia.

A psicóloga partilhou a sua experiência de 25 anos na matéria, lembrando ainda os problemas que a má condução de uma investigação pode gerar. «Muitas vezes as pessoas formam memórias falsas e mais pormenorizadas devido à pressão exercida pelos especialistas», sustentou, adiantando ainda ser frequente verificar-se que, antes da revelação (feita pelas testemunhas), «houve procedimentos de carácter sugestional» que induziram a determinada resposta. Elizabeth Loftus considera que os peritos que trabalham em investigações como a do caso Casa Pia devem ser «colaboradores independentes».

Por outro lado, isenção e rigor na peritagem são também características essenciais para Concheiro Carro, da Universidade de Santiago de Compostela. O especialista alertou para a «imprudência» que é atribuir a um determinado indivíduo a prática de um acto de abuso sexual sem se ter certeza absoluta, até porque os abusos sexuais praticados há algum tempo são muito difíceis de provar, após terem decorrido 72 horas, os indícios vão-se diluindo. 

6. Médicos de Coimbra

Três psiquiatras detectaram psicopatologias graves nos jovens      

Três psiquiatras arrasaram por completo os testes feitos para avaliar credibilidade das testemunhas.Alexandra Ansiães admite falhas. Perita alvo de críticas

Jornal de Notícias - 25.04.2004

Os resultados dos testes destinados a aferir a credibilidade das alegadas vítimas do processo de pedofilia na Casa Pia, efectuados no Instituto Nacional de Medicina Legal de Lisboa (INML) pela psiquiatra Alexandra Ansiães, foram "arrasados" por três outros psiquiatras, um deles colaborador do próprio INML.

Numa análise crítica dos exames periciais feitos a seis dos jovens que acusam os arguidos - solicitada pela defesa de Paulo Pedroso -, Pio Abreu, psiquiatra chefe de serviço do Hospital da Universidade de Coimbra e professor nessa instituição, Santos Costa, consultor de psiquiatria da delegação de Coimbra do INML, e Cristina Oliveira, pedopsiquiatra e docente na Faculdade de Medicina de Coimbra, começam por estranhar que os relatórios destinados a aferir a credibilidade dos jovens "são muito semelhantes entre si e foram realizados pela mesma pessoa" em cerca de um mês.

Após essa observação, os psiquiatras acusam a perita do INML de ter feito confusão entre credibilidade ou veracidade dos relatos dos jovens, o que aliás também terá acontecido com o próprio Ministério Público. Alexandra Ansiães é depois acusada de se ter baseado apenas nas entrevistas feitas às supostas vítimas e de não ter cruzado os respectivos relatos com outros dados, designadamente com os relatórios sociais da Casa Pia e com as declarações feitas às autoridades, pelo que era impossível detectar erros grosseiros nas entrevistas.

Os psiquiatras descobriram incoerências nos relatos que a perita não considerou nos seus relatórios e concluíiram que alguns jovens sofrem de psicopatologias graves. Os testes usados por Alexandra Ansiães foram descredibilizados.

Quando foi ouvida pela juíza de instrução, Alexandra Ansiães revelou que trabalha essencialmente com adultos e adolescentes maiores de 16 anos e que não tinha experiência em situações de abusos sexuais. Confessou ainda que nenhum dos testes que usou - três diferentes - serve para aferir se uma pessoa fala a verdade ou mentira. Admitiu que pode ter havido falhas devido ao pouco tempo que teve para fazer as perícias e reconheceu que os relatos que lhe foram feitos podem ter sido construídos na PJ. Salientou que não é especialista na área dos abusos sexuais e que no país não há testes desta natureza.

7. Gary Wells, Richard McNally e Elizabeth Loftus - psiquiatras e psicólogos norte-americanos

Elizabeth Loftus considera que o simples facto de se puxar de uma fotografia a torna suspeita

"Depoimentos devem ser sempre gravados em vídeo". Psicóloga americana põe em causa reconhecimentos fotográficos durante as investigações 
       

Jornal de Notícias- 06.01.2004

A professora universitária norte-americana Elizabeth. Lothus, especializada em memória e frequentemente consultada em casos de abusos sexuais, falou ao JN do perigo das recordações falsas nos depoimentos das vítimas do processo Casa Pia.

JORNAL DE NOTÍCIAS -Conhece o caso Casa Pia, processo de pedofilia que envolve algumas figuras públicas portuguesas?
Elizabeth Loftus -Não conheço suficientemente bem os pormenores do caso, mas acho que há algumas coisas suspeitas. Pelo que percebi, durante anos nunca se ouviu falar dos abusos, que terão acontecido durante muito tempo, mas de repente surgiram nomes de várias pessoas que são suspeitas.

As alegadas vítimas de pedofilia foram sujeitas a sucessivos interrogatórios. Isso pode ter influenciado o surgimento de falsas memórias nos seus depoimentos?
Os depoimentos devem ser sempre gravados em vídeo para se ter a certeza de que não houve pressão para que determinada resposta surgisse na boca do interrogado. É preciso saber de onde surgiram as ideias e se foram resultado de alguma sugestão ou de coacção.Muitas vezes, a própria pessoa que faz o interrogatório sugere determinada resposta sem sequer saber que o está a fazer. É isso que a gravação em vídeo permite aferir. Durante a fase de reconhecimento dos suspeitos, foram mostradas às crianças fotos de dois conhecidos políticos. Depois, num segundo reconhecimento, essas mesmas fotos voltaram a ser mostradas juntamente com várias imagens de outros possíveis suspeitos. Os menores acabaram por reconhecer as pessoas que tinham visto nas primeiras fotografias... Uma pessoa pode parecer familiar a outra que já tenha visto a sua fotografia. O mesmo se aplica à imagem de uma pessoa famosa e conhecida... Pode parecer familiar a quem está a fazer o reconhecimento.É preciso ter cuidado, até porque o simples acto de se puxar uma foto de uma pessoa fá-la parecer suspeita. É uma situação muito perigosa...

-Como é que se pode determinar se as memórias de abusos sexuais durante a infância são verdadeiras ou falsas?
-É preciso perceber como é que surgiram as denúncias, ter a certeza de que não surgiram na sequência de sugestões da acusação, apurar se houve alguém que teve conhecimento dos factos na altura em que aconteceram. No processo da Casa Pia, não me parece ter havido investigação suficiente.

 

Psiquiatras estrangeiros contestam portugueses

EXPRESSO-   01.11.2003 

Por: Jorge Van Krieken

Os especialistas contestam que os terapeutas das vítimas da Casa Pia sejam peritos na acusação.

Os psiquiatras e psicólogos norte-americanos Garry Wells (professor de Psicologia da Universidade de Ohio) e Elizabeth Loftus (investigadora reconhecida mundialmente pelos trabalhos em síndromas de falsas memórias) ALGUNS dos maiores investigadores mundiais em peritagem testemunhal, os psiquiatras e psicólogos norte-americanos Elisabeth Loftus, Garry Wells e Richard McNally, contestam as afirmações dos psiquiatras Pedro Strecht e de Álvaro Carvalho, quando estes afirmam poder garantir, através de testes e observações, que as crianças e jovens adolescentes do processo Casa Pia estão a dizer a verdade quando acusam A, B e C de terem cometido abusos sexuais.

Garry Wells é professor de psicologia da Universidade de Ohio e colabora activamente com o Departamento norte-americano de Justiça na legislação sobre prova testemunhal, reconhecimento fotográfico e interrogatórios. Quando questionado sobre se é possível fazer uma afirmação como a destes psiquiatras portugueses, Wells responde com um «não»: «Sigo esta ciência há muito tempo. Se acontece que estes psiquiatras sabem de alguma técnica especial que o resto do mundo científico desconhece, adoraria ouvir mais sobre isso».

Por seu turno, Elisabeth Loftus, doutorada em Standford e considerada uma das maiores investigadoras mundiais nas síndromas de falsas memórias, refuta igualmente afirmações de Pedro Strecht e critica o médico por ter feito estas afirmações publicamente, dado ser simultaneamente médico particular de algumas das crianças e jovens. Se isto tivesse sucedido nos EUA, ele «seria processado por difamação», afirma Loftus.

Richard McNally, professor de psicologia em Harvard, vai na mesma linha: «Não vejo como é possível a esses médicos reivindicarem ou afirmarem que têm a certeza de que as crianças estão a dizer a verdade. Desconheço qualquer teste que possa fornecer essa garantia».

Os professores e investigadores referem-se, também, às justificações de Strecht com os testes que diz ter realizado aos jovens, (WISC, CAT e RORSCHASCH,). Para Elisabeth Loftus, essas afirmações «são irresponsáveis e enganadoras ao tentarem sugerir que os testes funcionam nessa direcção, quando não existe nenhuma evidência credível sobre isso».

Risco de sugestão e inquinação
Os investigadores lançam um alerta para a eventualidade de Portugal estar a viver um processo de histeria de falsas acusações sobre abusos sexuais, em grande parte provocado por um processo de sugestão e inquinação testemunhal. E relembram o que aconteceu nos Estados Unidos e em muitos outros países. «Centenas de pessoas foram presas aqui nos EUA, acusadas de crimes de abuso sexual. Mais tarde, descobriu-se que a grande maioria era inocente. Foi uma catástrofe e muitos casos foram provocados por sugestão pelos próprios médicos psiquiatras, psicólogos e terapeutas», conta Garry Wells, que recorda as profundas feridas que estes episódios deixaram, há uma década: «Passámos por isso tudo e foi uma experiência muito nefasta durante um longo período, mas saímos disto muito mais sábios e mais exigentes quanto a formas mais claras de prova».

Houve outras vítimas, além dos inocentes acusados: as próprias crianças. «Muitos processos destruíram as crianças. Ao serem tratadas como tivessem sido abusadas, quando isso afinal não aconteceu, as crianças que não eram vítimas transformaram-se em vítimas da própria falsa alegação. Hoje são doentes do foro mental, quando não eram» - relata Ralph Underwager, um veterano nesta área, director do IPT-forensic, que participou em mais de 500 casos de abuso sexual.

Também a comunidade académica nacional está apreensiva. Adriano Vaz Pereira, professor catedrático de Psiquiatria da Universidade de Coimbra, Óscar Gonçalves, catedrático do departamento de Psicologia da Universidade do Minho, e vários outros professores, psicólogos e psiquiatras (como Pio de Abreu, Ana Vasconcelos ou Cristina Gonçalves) secundam os seus colegas norte-americanos nas críticas às declarações de Pedro Strecht e Álvaro Carvalho.

Terapeuta e perito são funções incompatíveis
Óscar Gonçalves é claro quanto às certezas de Strecht e de Carvalho sobre as alegações das crianças e jovens: «Não. De modo nenhum isso é possível. O mais que eles podem atestar é que as próprias pessoas julgam que estão a dizer a verdade, o que é completamente diferente. De modo nenhum há uma forma de podermos atestar que, de facto, é verdade o testemunho de outra pessoa». Para o catedrático, «este fenómeno, nos Estados Unidos, nasce com os terapeutas»: «Tenho uma forte apreensão que a sua dimensão epidémica esteja a ser criada pelos próprios terapeutas, que sejam eles a criar as memórias falsas».

A outra questão que escandalizou a comunidade académica foi o facto de terem sabido que ambos os médicos, Strecht e Carvalho, são simultaneamente terapeutas de vários destes jovens. Segundo todos os entrevistados, ser terapeuta e perito é totalmente incompatível.

Tanto os investigadores nacionais como os internacionais referem que é absolutamente vital que Portugal aprenda com a experiência de outros países que já passaram por este tipo de «epidemia», assim como que as autoridades judiciais recorram a equipas de peritos totalmente independentes para os apoiar neste tipo de casos.

Recorde-se que os relatórios entregues por Strecht e a sua equipa ao Ministério Público validaram os testemunhos dos jovens e crianças da Casa Pia nas acusações contra Carlos Cruz, Paulo Pedroso, Hugo Marçal, Manuel Abrantes, Ferreira Diniz e Herman José, entre outros. São também estes relatórios médicos, e os realizados no mesmo sentido pelo Instituto de Medicina Legal, que estão a servir de justificação para a realização das inquirições para memória futura.

8. Cristina Soeiro - Psiquiatra (Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais)

Relação fala em várias entrevistas às testemunhas Interrogatórios a mais 

Jornal de Notícias - 13.10.2003

Por: Carlos Tomás e Tânia Laranjo

"Com datas anteriores à do despacho recorrido, foram juntos a este apenso quatro autos contendo depoimentos seus prestados entre 6 de Janeiro e 21 de Maio de 2003, transparecendo do primeiro deles, que essa pessoa já tinha sido anteriormente ouvida no proces-so." A frase consta do acórdão da Relação de Lisboa que determinou a libertação do deputado socialista Paulo Pedroso.

Os desembargadores que assinaram o documento fizeram questão de revelar o número de vezes que todas as testemunhas foram ouvidas pela equipa liderada pelo procurador João Guerra, deixando assim claro que os jovens foram construindo os seus depoimentos ao longo do tempo.

Um procedimento que colide com a doutrina difundida pelo Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. Cristina Soeiro, psiquiatra responsável pela elaboração dos manuais de formação dos inspectores da PJ que investigam os abusos sexuais de menores, defende que as vítimas devem ser interrogadas o menor número de vezes possível, para não recordarem factos muito traumáticos.

"Se a entrevista for bem conduzida, há poucas probabilidades de a criança estar a mentir e não vale a pena voltar a interrogá-la.Em Portugal, as vítimas de abusos sexuais são interrogadas vezes sem conta até o caso ser finalmente julgado, o que é de uma grande violência", afirmou a especialista numa entrevista concedida ao JN, pouco depois das prisões de Carlos Cruz, Ferreira Diniz e Hugo Marçal.

Aliás, a psiquiatra é mesmo da opinião que um menor de 12 anos deve ser interrogado apenas uma vez e a entrevista durar cerca de 45 minutos.

No Instituto Superior da PJ os investigadores aprendem ainda a pedir aos menores abusados para descreverem partes do corpo dos agressores: se existem tatuagens, cicatrizes ou deformidades, por exemplo. Segundo uma testemunha do processo, ouvida durante quatro horas pelos investigadores, em Abril, nada disto lhe foi perguntado. 

9. Colégio de Psiquiatria

Médicos - Documento, que foi ontem junto aos autos, diz que não é possível aferir qualquer credibilidade das vítimas através dos testes realizados. Parecer considerado fundamental

Jornal de Notícias - 30.04.2004

Por: Carlos Tomás e Tânia Laranjo

Ordem põe em causa perícias feitas a jovens 

O Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos arrasou as perícias de avaliação da personalidade das testemunhas do processo de pedofilia na Casa Pia de Lisboa, efectuadas pela psicóloga clínica Alexandra Ansiães, do Instituto de Medicina Legal de Lisboa.

Nos seus relatórios, a perita atestava que as testemunhas eram credíveis e falavam a verdade, facto que motivou forte contestação por parte dos arguidos, tendo Carlos Cruz requerido, no pedido de abertura de instrução, que o Colégio de Psiquiatria se pronunciasse sobre a forma como os testes de personalidade aos jovens foram efectuados e se as conclusões retiradas por Alexandra Ansiães eram ou não as correctas.

Ontem, cumprindo uma ordem da juíza Ana Teixeira e Silva, o parecer do organismo da Ordem dos Médicos chegou aos autos e as conclusões deitam por terra a forma como as perícias foram efectuadas. O documento é assinado por Luísa Figueira, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, enquanto presidente do Colégio da especialidade.

Segundo o JN apurou, os médicos que assinam o parecer garantem que os exames são inconclusivos e que, através deles, não é possível determinar se os jovens são ou não credíveis. Dizem ainda que os testes usados por Alexandra Ansiães, denominados WAIS, MMPI (ou a sua versão reduzida Mini-Mult) e Rorschach não são apropriados para a avaliação da credibilidade das pessoas e que, além disso, foram mal aplicados aos casos em concreto e os seus resultados não foram bem interpretados pela perita.

Os membros do Colégio salientam que deveria ter sido analisada a motivação dos sujeitos para a iniciativa das denúncias, o seu grau de sugestionabilidade, imaturidade, dependência e contactos a que foram sujeitos, mas nada disto terá sido feito.

Refira-se, ainda, que os médicos do Colégio de Psiquiatria analisaram todos os testes psicológicos efectuados por Alexandra Ansiães e estranham que a perita tivesse concluído pela "coerência das descrições e manifestações emocionais concomitantes com a descrição" das alegadas vítimas, não tendo detectado perturbações cognitivas, incluindo de memória, ou patologias graves, o que está patente em vários dos testes que foram feitos aos jovens.
Em causa foi também colocado o facto de Alexandra Ansiães não ter recorrido a fontes e observadores independentes, limitando-se a analisar a entrevista que fez aos rapazes e os testes por eles executados.

Juiz validou-os
Os testes de personalidade feitos às alegadas vítimas foram um dos factores fulcrais para que Rui Teixeira tivesse determinado a prisão preventiva de vários arguidos do processo (alguns deles entretanto libertados pelo Tribunal da Relação de Lisboa).

No caso de Carlos Cruz, o último acusado a ser submetido a novo interrogatório judicial por ordem do tribunal de 2ª instância, o juiz considerou mesmo que a "credibilidade" aferida pela médica do Instituto de Medicina Legal não deixava dúvidas de que os jovens não estavam a mentir. O que significava que se os arguidos tinham álibis para determinadas datas concretas, isso só se poderia dever a lapsos nas descrições e contextualizações cometidos pelas alegadas vítimas.

Entretanto, a perita foi recentemente posta em causa num parecer junto aos autos pelos advogados de defesa. O documento, assinado, entre outros especialistas, pelo médico Pio Abreu, também levanta as dúvidas agora esplanadas na opinião do Colégio da especialidade.Os médicos entenderam igualmente que não podia ser aferida a credibilidade das vítimas e a possibilidade de estarem ou não a mentir através dos exames de personalidade que lhes tinham sido feitos.

O parecer da Ordem, considerado vital para a defesa, poderá assim revelar-se fundamental na decisão que a juíza deverá tomar, ao que tudo indica durante a segunda quinzena de Maio. Nomeadamente, sobre quem recaem mais possibilidade de estar a falar verdade.Se sobre os arguidos, se sobre os jovens casapianos.

Os testes usados

MMPI
Conjunto classificável de 500 perguntas, frequentemente usado para esclarecer patologias da personalidade. É um exame complementar, nunca servindo de base de trabalho, como terá acontecido no processo Casa Pia.

Rorschach
Teste que consiste na apreciação de uma série de manchas de tinta, que o examinando vai interpretando e dizendo a que se assemelham.É muito contestado na comunidade científica

WAIS-R
É um teste de inteligência que mede diferentes aptidões supostamente contributivas da inteligência. 

 

10. Conselho Superior de Magistratura

Casa Pia: "Monstruosidade jurídica"

Correio da Manhã - 02 Fevereiro 2010

Por: Ana Luísa Nascimento

O Conselho Superior da   Magistratura (CSM) indeferiu esta terça-feira o pedido de aceleração processual requerido por Carlos Cruz devido à demora do processo, mas considerou que o facto do julgamento durar há mais de cinco anos demostra "a ineficiência do nosso sistema de justiça".

Em esclarecimentos aos jornalistas, o vice-presidente do CSM explicou que é um risco o conselho estar a interferir no processo, mas revelou que é entendimento unânime do órgão de gestão e disciplina dos juízes que o caso "está a demorar muito tempo". "Um processo com 900 testemunhas é uma monstruosidade jurídica", afirmou Ferreira Girão, não descartando a hipótese de o conselho vir a tomar medidas contra o facto de dois dos três juízes já não estarem em exclusividade no processo de pedofilia da Casa Pia.

 

Magistrados criticam novo adiamento da sentença

Diário de Notícias - 29 Julho 2010

Por: Filipa Ambrósio de Sousa

Mal-estar entre juízes pode explicar adiamento para 3 de Setembro.

A leitura da sentença do processo Casa Pia foi adiada pela segunda vez. A primeira registou-se a 9 de Julho, justificando-se o adiamento para ontem com a obrigatoriedade de se exercer o contraditório sobre o novo relatório social requerido para Carlos Silvino, "Bibi". A desculpa, ontem apresentada para adiar a diligência para 3 de Setembro, é a de que a presidente do colectivo de juízes, Ana Peres, necessita de tempo para redigir o acórdão.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) admite que foi apanhado de surpresa com este segundo adiamento, mas diz que "não há nenhum drama". Porém, os magistrados da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP) e da Associação Juízes pela Cidadania (AjC) concordam que se trata de mais um momento desprestigiante para a imagem da justiça portuguesa. Porém, o DN sabe que a maior dificuldade em dar a conhecer a sentença aos sete arguidos, há mais de cinco anos em julgamento, prende-se com a falta de entendimento entre os três magistrados do colectivo relativamente à valoração das provas.

Segundo fontes contactadas pelo DN, o mal-estar entre o colectivo é patente há mais de um ano, sobretudo depois das alegações finais iniciadas a 24 de Novembro de 2008 e terminadas em Maio de 2009. O desentendimento tem vindo a ser comentado pelos intervenientes processuais, ao ponto de, a certa altura, recordam as fontes do DN, o arguido Carlos Cruz ter desabafado: "Um juiz quer condenar-me e outro quer libertar-me." O magistrado mais inclinado para a libertação seria Ana Peres e o mais empenhado na condenação seria Lopes Barata.

Um magistrado judicial ouvido pelo DN garante que a sentença já estaria cá fora há pelo dois anos se tivesse havido um bom entendimento entre o colectivo. "Houve falta de liderança disciplinadora. Deixaram fazer tudo o que os advogados quiseram para evitar recursos incidentais. Não os evitaram, existem cerca de 300, e entorpeceram o processo", disse. De mais a mais, acrescentou, "com pessoas que estão em exclusivo naquele processo". "Os juízes não fazem mais nenhum processo. Só têm aquele. As sessões deveriam ter sido marcadas com outro ritmo. A justiça teria ficado mais prestigiada se a sentença tivesse sido emitida há dois anos", frisou.

Ricardo Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz, lamentou o adiamento, mas mostrou-se conformado. "Mais vale tarde e bem, do que mais cedo e mal", disse.

O advogado de Carlos Silvino reagiu de modo diferente. José Maria Martins considerou "totalmente incompreensível", e associou o "atraso intolerável de todo o processo" a "pressões do poder político".

Por seu lado, Miguel Matias, advogado das vítimas, considerou que mais este adiamento "prejudica todos os intervenientes do processo que já vai longo".

A defesa de um outro arguido estranhou que o adiamento tenha sido anunciado apenas ontem, ao final da manhã. "As razões invocadas já existem há muito tempo", disse, tendo sublinhado: "E quem marca para 5 de Agosto, em plenas férias, é porque supostamente seria para cumprir. Além de que, achávamos nós, a esta altura já não estaria em causa a redacção do acórdão mas sim a revisão e correcção de algumas coisas." Mais ainda: Depois do comunicado do CSM, "pensávamos que desta é que era!", frisou.

Para António Martins, presidente da ASJP, o adiamento é para lamentar, observando que cabe ao CSM avaliar o desempenho dos juízes e dos tribunais. Para Rui Rangel, da AjC, o tempo é de credebilização e de reforço da boa imagem da justiça, e este novo adiamento é mais um contributo para a descredibilização.

11. Tribunal da Relação de Lisboa

Relação critica MP e descredibiliza vítimas

Diário de Notícias - 10.11.2005

Por: Céu Neves

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) entende que não há indícios para levar Paulo Pedroso, Herman José e Francisco Alves a julgamento no âmbito do processo Casa Pia, mantendo o despacho de não pronúncia. O colectivo põe em causa a argumentação do Ministério Público (MP), bem como alguns testemunhos, no entanto, em relação a Paulo Pedroso diz que há "uma dupla e insanável dúvida" "quanto à veracidade das imputações feitas ao arguido" e "quanto à pretendida inocência deste".

"Assim sendo e porque na dúvida, o MP não deve acusar nem o juiz deve pronunciar, tem de concluir-se que não se encontram reunidos indícios suficientes de o arguido haver cometido os imputados crimes", refere o acórdão, cujo relator foi Rodrigues Simão. Carlos Sousa e Mário Morgado, os coadjuvantes, concordaram, tendo o colectivo decidido manter a "decisão recorrida", a não pronúncia de Paulo Pedroso.

O TRL foi bastante crítico em relação à argumentação do MP, nomeadamente quanto este defende que a recusa de perícias de personalidade das vítimas baseou-se no "senso comum"; e de que não foi dada a importância ao sinal no pénis de Paul Pedroso que os menores dizem ter visto. Os desembargadores afirmam que "a pretensa mancha" não foi detectada "e que a suscitada hipótese de ela haver sido removida não se confirmou". Acrescentam, também, que "nada de relevante" se encontra nas escutas telefónicas "para a pretendida indiciação do arguido".

São postos em causa os reconhecimentos e os testemunhos "pretendidamente incriminatórios", como sublinha o acórdão. Classificam as declarações de "falsas, inventadas, contraditórias e delirantes", acusando o MP de "tentativa de manipulação grosseira de depoimentos". Concluem que este nunca devia ter sido acusado neste processo, quanto mais arguido. Paulo Pedroso pede uma indemnização de cerca de 850 mil euros por ter sido detido em prisão preventiva "ilegalmente".

A justificação para a não incriminação de Herman José e Francisco Alves é mais sucinta e oferece menos dúvidas ao colectivo do TRL. Referem a falta de credibilidade e consistência no testemunho que incrimina o humorista, além de sublinharem que o "crime de actos homossexuais com adolescentes", foi declarado inconstitucional . Quanto à não pronúncia de Francisco Alves, o TRL considerou "que são ilegítimas as conclusões" do MP ao considerá-lo arguido. "Nenhuma responsabilidade criminal pode ser assacada", diz em relação aos 34 crimes inicialmente imputados ao arqueólogo.

RECURSOS. O recurso do Ministério Público contra a decisão da juíza de instrução, Ana Teixeira, apresentado há dois anos, foi apenas um dos quatro analisados neste acórdão. Também os representantes da Casa Pia de Lisboa e assistentes recorreram, mas o recurso foi rejeitado "por falta de legitimidade".

Aquelas partes protestaram, também, contra o número de crimes imputados aos arguidos depois do debate instrutório e que, neste momento, respondem no tribunal pelos crimes de pedofilia e lenocínio com crianças da Casa Pia; Manuel Abrantes, Maria Gertrudes e Carlos Silvino e Hugo Marçal

O MP pediu também que fossem alteradas as medidas de coacção de todos os arguidos pronunciados e de Paulo Pedroso, propondo a privação da liberdade e o recurso à pulseira electrónica. Este recurso foi negado, por se considerar que foi respeitado o "princípio da adequação e proporcionalidade".

Os representantes de Manuel Abrantes e Carlos Cruz também pediram a alteração da medida dos seus clientes - a obrigatoriedade de permanecerem no concelho de residência - o que foi negado. Ricardo Sá Fernandes, representante do apresentador de televisão, não comentou esta decisão, salientando ao DN a crítica feita pelo TRL ao MP, antevendo que alguns dos argumentos serão utilizados na defesa do seu cliente.

O MP, advogados da Casa Pia e dos arguidos do processo têm, agora, 15 dias para recorrer, cabendo à Relação aceitar ou não. No entanto, a jurisprudência não tem admitidos o recurso. Podem, ainda, protestar junto do Constitucional.

12. Pires de Lima - Ex Bastonário da Ordem dos Advogados

Pires de Lima compara Ministério Público à Pide e à Gestapo

Revista Pública -26.04.2003

O ex-Bastonário da Ordem dos Advogados António Pires de Lima compara, em entrevista publicada este domingo, na revista Pública, o Ministério Público (MP) à Pide e à Gestapo, acusando os seus profissionais de agirem sem consideração pelos direitos dos arguidos. Contudo, o MP não é o único visado nas declarações de Pires de Lima, o qual deixa ainda um conselho à Ministra da Justiça: que esteja calada e trabalhe.

Numa longa entrevista de três páginas à revista do jornal Público, o antecessor de José Miguel Júdice na Ordem dos Advogados considera que a necessária independência do Magistério Público não existe e que não são sequer os magistrados mais qualificados que acabam por ingressar no MP.

Quanto às acusações de que o MP age como se fosse a PIDE ou a Gestapo, António Pires de Lima baseia-as nas alegações dos procuradores do processo de pedofília da Casa Pia no Tribunal da Relação, as quais, na opinião deste advogado, revelam uma total desconsideração pelos direitos dos arguidos.

Também devido a este facto, o ex-Bastonário junta-se àqueles que defendem que as alterações ao processo penal devem ser feitas imediatamente, com o Governo a promovê-las desde já, enviando-as, de pronto, à Assembleia da República.

Contudo, numa análise muito crítica à Justiça portuguesa, António Pires de Lima não deixa sequer incólume a actual Ministra da Justiça, Celeste Cardona, sua companheira de partido.

Na opinião do sucessor de José Miguel Júdice, a ministra só tem uma solução: manter-se calada e trabalhar. 

13. Marinho Pinto - Bastonário da Ordem dos Advogados

ENTREVISTA A MARINHO PINTO

O PRIMEIRO DE JANEIRO - 29.03.2004

-Esta a dizer que devemos ter todos muito medo...
-Estou a dizer que não há confiança. Temos de ter confiança no juiz julga. Nestes tribunais não podemos ter confiança, porque as coisas podem mudar 180 graus, de um momento para o outro.
-Qualquer cidadão pode ser detido sem saber de que é acusado...
-Foi o que aconteceu neste caso monstruoso da Casa Pia. Isto era o que fazia a Santa Inquisição. Ou a Pide. A Pide prendeu-me sem me dizer porquê e estive lá dentro meses...
-Mas nem o Estado Novo deixava as pessoas na cadeia durante tanto tempo sem acusação formada...
-O sistema penitenciário do Estado Novo era muito mais respeitador da pessoa humana do que este. Com excepção dos presos políticos. Como preso político nunca me disseram porque estive preso. Acusavam-me vagamente de ser contra o regime.
-Mas nos processos comuns era diferente...
-Havia respeito e garantias para os arguidos. Hoje são garantias formais, que não valem nada na prática. No caso Casa pia as pessoas estão presas há um ano sem saberem porquê. Pode haver pessoas inocentes ou culpadas...
...deviam ser presumíveis inocentes.
Deviam ser. Mas são presumíveis culpados, por isso estão presos. Podiam estar com uma caução, com uma pulseira electrónica, com a obrigatoriedade de não se ausentar... Mas não: estão presos e já a cumprir pena. Mesmo sem terem sido julgados. Depois ficam todos muito revoltados quando digo que os nosso tribunais se assemelham aos tribunais do Santo Ofício do que tribunais no Estado de Direito.
-Até que a acusação esteja formada qual é o prazo legítimo ou aceitável para que alguém esteja preventivamente detida?
-No máximo? Quinze dias para deduzir a acusação. Os indícios suficientemente fortes para por alguém na cadeia também devem ser suficientemente fortes para deduzir uma acusação. Em Portugal prendem e depois vão procurar as razões.
E com calma. Deveria ser como nos países civilizados: investiga-se e depois vê-se.
Em Inglaterra, se um jornal ou televisão furar a «lei da rolha», o director arrisca-se seriamente a ir parar à cadeia, em Portugal centenas de capas de jornais violaram o segredo de Justiça e não resultou sequer em multa...
Originariamente o segredo de justiça era para proteger a eficácia da investigação. A partir do momento em que determinadas pessoas começaram a sentar-se no banco dos réus o segredo de justiça passa a ser um direito pessoal do arguido. O segredo de Justiça é utilizado para cobrir a incompetência dos investigadores e magistrados.
Por isso é favorável a que o segredo seja aberto à comunicação social
Os tribunais administram a justiça em nome do povo. E portanto têm de estar abertos ao povo. Realizar a justiça concreta, e mandar para a sociedade uma mensagem de paz. A decisão de um processo X interessa-me. Porque pertenço a essa comunidade.
-As pulseiras electrónicas deveriam ser mais usadas?
-Está a ser mal utilizada. Devia ser utilizada para substituir a prisão preventiva e não: está ser usada para substituir medidas mais leves.
-A ideia era boa.
-Mas está a ser mal utilizada. É o costume com as nossas leis: são muito boas e muito mal aplicadas.
-Temos uma justiça cega...
-O problema não está na cegueira. Mas nos magistrados. Estão entre Salomão e Pilatos. E todos os magistrados deveriam passar um mês nas cadeias para ver para onde mandam as pessoas. Estou convencido que se os nossos magistrados tivessem um conhecimento efectivo da realidade sobre as prisões portugueses não mandavam para lá tanta gente.
-Depois da Casa pia a sociedade portuguesa ficou com outra noção da realidade e da justiça
-O que aconteceu ali acontece a milhares de pessoas. Mas que normalmente não têm possibilidade de recorrer para o tribunal Constitucional. E estes podem. Os outros têm um advogado estagiário e inexperiente, que não lhes arranja estas formas de recorrer. E depois num processo onde o juiz se nota tanto... O juiz é como um árbitro de futebol: quando mais damos por ele, pior o jogo. E nós temos juízes vedetas. O juiz Rui Teixeira emergiu como uma grande vedeta. Tem manifestações e marchas brancas.
-E porquê?
-Porque não há mecanismos de regulação interna. O Conselho Superior de Magistratura transformou-se num órgão sindical. Aparece só a defender os magistrados como um órgão sindical.
-Estamos numa nova fase do processo Casa Pia. O que poderá mudar?
-Imprevisível. Mas já começaram alguns problemas nas inquirições: nem toda a gente foi chamada a assistir.

14. José Miguel Júdice - Ex Bastonário da Ordem dos Advogados

SEGREDO DE JUSTIÇA

Jornal de Notícias - 06.02.2003

Em 1996, a questão deu origem a um aceso conflito. Proença de Carvalho, advogado de defesa da ex-ministra Leonor Beleza, no caso do sangue contaminado ministrado a hemofílicos, decidiu publicar um livro sobre o processo, alegadamente para pôr os pontos nos is, numa fase em que a história voltava às manchetes. A Ordem dos Advogados abriu-lhe um processo disciplinar.
Na apresentação da obra, Freitas do Amaral largou uma bomba: "É o Estado, através do Ministério Público (MP) e da Procuradoria-Geral da República (PGR), quem mais viola o segredo de justiça", afirmou, acusando aquelas instituições de soltarem para a Comunicação Social informações prejudiciais à arguida.
Cunha Rodrigues, então procurador-geral, sentiu-se tocado. Pediu ao Supremo Tribunal de Justiça um inquérito a eventuais violações do segredo e anunciou um processo-crime contra Freitas, por difamação.
Com o tempo, a fogueira perdeu intensidade. Souto Moura, que sucedeu a Cunha Rodrigues, contentou-se com um pedido de desculpas do ex-líder do CDS, em Setembro de 2002.
Hoje, encontrar alguém que se pronuncie sobre a questão do segredo de justiça, no âmbito do caso de pedofilia, é tarefa inglória. Nem a Associação Sindical dos Juízes Portugueses nem o Sindicato dos Magistrados do MP se mostram interessados.
O bastonário dos advogados, por seu lado, afirmou, ao JN, que a Ordem está interessada em contribuir para serenar os ânimos."Vocês (jornalistas) estão a ser intoxicados com notícias falsas. Criou-se uma situação insustentável de parte a parte", disse José Miguel Júdice, garantindo que o organismo que representa não participará em mais debates. "Não há nenhum juiz, testemunha ou advogado que esteja sereno neste momento".

 

Júdice não quer pedo-psiquiatras a falar com miúdos sobre o julgamento

Num discurso proferido no último domingo ameaçou intervir no processo Casa Pia... 

24 Horas - 03.09.2003

José Miguel Júdice - Só se alguma coisa estiver a correr mal. Se, por exemplo, como parece que aconteceu durante a vídeo-conferência, o televisor para os juízes e magistrados for muito maior do que o dos arguidos e advogados, está mal e a Ordem deve chamar a atenção para o facto. Se o juiz levantar problemas por causa dos substabelecimentos dos advogados, nós devemos intervir e emitir um parecer para evitar que volte a acontecer o mesmo.

24horas - Foi apanhado de surpresa pelo pedido de afastamento do juiz Rui Teixeira?

JMJ - Completamente.

24horas - Os advogados do processo pediram-lhe uma opinião?

JMJ - Obviamente que não!

24horas - Existe a ideia que a Ordem tem estado do lado da defesa...

JMJ - Não é verdade. Há advogados na defesa e na acusação. O que nós defendemos é que a acusação e a defesa devem lutar com espadas do mesmo tamanho. Nós não queremos proteger a defesa, queremos proteger o Estado de Direito. O meu papel é esse.

24horas - Entende que o dr. Rui Teixeira estava a proteger o Ministério Público neste caso?

JMJ - Não faço ideia porque não conheço o processo. O juiz de instrução não tem nada a ver com o Ministério Público e não devia falar com nenhum procurador sem a presença do advogado do processo. É errado que o juiz e o procurador tenham gabinetes no mesmo edifício. O procurador não devia estar sentado ao lado do juiz, como está acontecer nestas vídeo-conferências. Esta mistura é má. Outro exemplo: li que os jovens que vão testemunhar estão familiarizados com o edifício da Polícia Judiciária. Está mal!

24horas - Porquê?

JMJ - Os miúdos devem ser ouvidos, com certeza. Mas tenho lido que técnicos qualificados estão a falar com eles sobre as questões que lhes vão ser perguntadas. Está mal! Os pedo-psiquiatras devem apoiá-los como médicos, não devem meter-se na realização da justiça.

24horas - Mas os miúdos perguntam-lhes o que vai acontecer.

JMJ - Eu não posso preparar o depoimento das testemunhas, é ilegal.

24horas - Acha que a Polícia Judiciária não devia falar com as testemunhas?

JMJ - As testemunhas devem ser interrogadas, o depoimento reduzido a auto, mas não se pode preparar as testemunhas. Isto é um problema que já existe há muitos anos. Tudo o que as testemunhas dizem deve ser gravado e escrito, senão não há defesa.

24horas - Como comenta o afastamento do dr. Dória Vilar neste processo?

JMJ - Não comento. Um cliente é livre de abandonar o advogado quando quiser. Acontece.

24horas - Já lhe aconteceu?

JMJ - Claro!

 

Carta Aberta do bastonário da Ordem dos Advogados ao procurador-geral da República

CARTA ABERTA EM FORMA DE TRíPTICO

Ex.mo Senhor Procurador e meu caro Amigo,

Uma carta aberta é escrita, sobretudo, para quem a lê e não para o seu destinatário. Neste caso, por maioria de razão. O que desejava dizer-lhe pessoalmente, está dito e, sendo nós os dois como somos, só a nós interessará. E do que dissemos nada transpirou para os jornais ... por muito que alguns media tenham colorido a pouco discreta divulgação (contra a sua vontade) da carta privada que me enviou, com textos que lhe são atribuídos e não estão na carta que recebi! Já chegàmos a isto : é-lhe atribuído, em discurso directo e entre aspas, o que não escreveu!

 

Peço-lhe, por isso, que não leve a mal que relembre alguns aspectos jurídicos e factuais que para si são óbvios, mas não o serão para muitos. E como o óbvio não é inimigo do bom...
Para facilidade de leitura começarei por (A) recordar a lei, depois (B) enunciar os factos e fazer algumas interpretações, e, finalmente acabar por (C) tirar conclusões. O que vou fazer de forma sumária:



A. A LEI

1. Ao MP compete exercer a acção penal orientado pelo princípio da legalidade (art. 1º e 3º nº1 , alínea c) do Estatuto do MP).

2. Não existe, portanto, em Portugal o princípio da oportunidade. Não está na disponibilidade do MP decidir ou não exercer a acção penal.

3. Ao MP compete dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades (art. 3º nº1, h).

4. O MP goza de autonomia em relação aos demais órgãos do poder e a sua autonomia caracteriza-se pela vinculação a critérios de legalidade e de objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do MP às directivas, ordens e instruções previstas no Estatuto (art. 2º).

5. A Procuradoria Geral da República é o órgão superior do Ministério Público (art. 9º nº 1).

6. Compete à Procuradoria Geral da República nomear e colocar os Magistrados do MP e dirigir, coordenar e fiscalizar a actividade do MP.

7. Compete-lhe, além disso, emitir directivas, ordens e instruções a que deve obedecer a actuação dos Magistrados do MP no exercício das respectivas funções (art. 10º).

8. Compete-lhe também propor ao Ministro da Justiça providências legislativas com vista à eficiência do MP e ao aperfeiçoamento das instituições judiciàrias (idem).

9. Compete-lhe igualmente informar, por intermédio do Ministro da Justiça, a Assembleia da República e o Governo acerca de quaisquer obscuridades, deficiências ou contradições dos textos legais.

10. A Procuradoria Geral da República é presidida pelo Procurador Geral da República (PGR)(art 11º).

11. O PGR exerce e/ou executa as funções da Procuradoria Geral da República (art. 12º).

12. Existe o Conselho Superior do MP (CSMP) (art. 15º a 33º).

13. O Ministro da Justiça comparece nas reuniões do CSMP, quando entender oportuno, para fazer comunicações e solicitar ou prestar esclarecimentos (art. 32º).

14. Os Magistrados do MP são responsáveis e hierarquicamente subordinados (art. 76º nº1), consistindo a hierarquia na subordinação aos de grau superior e consequente acatamento das directivas, ordens e instruções recebidas.

15. Os Magistrados do MP só devem recusar as directivas, ordens e instruções ilegais e podem recusá-las com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica. Nestes casos o Magistrado que tiver emitido as directivas, ordens ou instruções pode avocar o procedimento ou distribui-lo a outro Magistrado. Mas se as directivas, ordens e instruções forem do PGR, só com fundamento em ilegalidade podem ser recusadas. O exercício injustificado da faculdade de recusa constitui falta disciplinar (art. 79º).


B. FACTOS E NTERPRETAÇÕES


1. Há muitos anos que os Cidadãos vêm assistindo a violações sistemáticas do segredo de Justiça. Em todos os Governos (relembro, a título meramente exemplificativo, o Independente durante os Governos Cavaco Silva), com todas as oposições, com mais do que um PGR.

2. Há muitos anos que os Cidadãos " sobretudo os mais atentos e informados - vão tomando conhecimento de utilizações excessivas, indevidas, descuidadas e estratégicas de escutas telefónicas, que nunca estiveram realmente sobre controle efectivo de nenhuma das Magistraturas.

3. Nunca até hoje se tomou conhecimento de nenhum caso de acusação de alguém pelo crime de violação de segredo de justiça (creio que apenas com excepção dos chamados casos Fernando Negrão e Manso Preto) e nunca até hoje alguém foi condenado pela prática de tal crime.

4. O sistema de escutas telefónicas funciona fora das regras legais que atrás enumerei, visto que o MP não intervém no seu controle técnico, nas transcrições nem na selecção entregue ao Juiz de Instrução Criminal, sendo então este Juiz - nesta matéria e contra o sistema em vigor " um elemento do processo de investigação, quando deveria estar totalmente fora da investigação.

5. De acordo com a minha melhor informação, o PGR ou o CSMP nunca propuseram ao Ministro da Justiça providências legislativas com vista ao aumento da eficiência do MP ou ao aperfeiçoamento das instituições judiciàrias em relação à luta contra a violação do segredo de Justiça ou ao melhor controle das escutas telefónicas.

6. De novo de acordo com a minha melhor informação, nunca o PGR ou o CSMP informaram, através do mesmo Ministro, a Assembleia da República ou o Governo de quaisquer obscuridades, deficiências ou contradições dos textos legais em relação às matérias mencionadas.

7. O Magistrado do MP, Dr. João Guerra, tem estado encarregado de forma ininterrupta da condução do chamado Caso Casa Pia, o que significa que existem fortes indícios de que não tenha recusado quaisquer directivas, ordens ou instruções de Magistrado de grau superior ou do PGR.

8. De forma regular, o MP, o Sindicato dos Magistrados do MP e o próprio PGR têm estigmatizado a violação do segredo de Justiça e muitas vezes confessado a impotência prática de o impedir, a menos que alterações legislativas ocorram, nomeadamente passando a punir os órgãos de comunicação social.

9. O MP tem informação destes factos notórios e, cabendo-lhe exercer a acção penal, é possível afirmar que nenhuma outra instituição da sociedade portuguesa está mais consciente da violação endémica do segredo de justiça, dos modos, das formas, dos momentos e dos destinos da prática concreta de tais violações.

10. O MP tem conhecimento de que a atenção dos media não é idêntica em relação a todos os processos em investigação e que tal atenção não procura factos sobre todos os sujeitos processuais: alguns processos despertam maior curiosidade do que outros, algumas personalidades são objecto de maior atenção do que outros.

11. O chamado Caso Casa Pia é seguramente o processo em investigação que mais atenção teve nos media em Portugal desde que há comunicação social, tendo sido também o processo em que até hoje violações do segredo de justiça foram mais abundantes e detalhadas.

12. As escutas telefónicas são um instrumento de investigação criminal muito usado, não me sendo possível afirmar se o processo Casa Pia é ou não aquele em que mais Cidadãos foram colocados sob escuta desde que este sistema começou a ser praticado.

13. Em relação a certo tipo de crimes, em que as escutas telefónicas são legais, parte significativa da Doutrina entende que só arguidos ou suspeitos indiciados podem ser colocados sob escuta. Essa é aliás a posição conhecida da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados e a minha própria. No processo Casa Pia, para esse sector da opinião jurídica, os crimes em investigação integram a categoria em que escutas a terceiros não devem ser possíveis.

14. É, no entanto, possível afirmar que nunca em Portugal foram divulgadas tantas escutas telefónicas cobertas pelo segredo de Justiça como está a acontecer no supra-citado processo, apesar da fase de Inquérito ainda nem sequer estar encerrada.

15. A subida de processos aos Tribunais da Relação permite que muitas mais pessoas tenham contacto com peças processuais cobertas pelo segredo de Justiça. E tais pessoas, que nenhum contacto têm com a investigação, estarão provavelmente menos sensibilizadas para os riscos e inconvenientes da violação do segredo de Justiça.

16. O MP e o concreto Magistrado que tem dirigido as investigações, Dr. João Guerra, não desconhecem nem podem desconhecer os factos atrás mencionados, pelo que é razoàvel exigir-lhes especial cautela e ponderação em todos os actos processuais de modo a que " na medida do possível e atentos todos os interesses em presença " se evite a criação de situações em que possa ser de esperar, com alguma probabilidade relevante, que violação do segredo de Justiça possa ocorrer. Por outro lado,

17. O que se discute, num recurso para a Relação de uma decisão de decretar ou manter a prisão preventiva de um arguido, é tão somente se um conjunto de factos, reportados a um normativo legal, justificam ou não justificam a existência dessa medida cautelar máxima e inequivocamente gravosa.

18. O que em concreto se discute então é se, havendo ou não fortes indícios de prática de certo tipo de crimes (art. 202 do CPP), ocorre um dos requisitos do art. 204 do mesmo Código : (1) perigo de fuga, (2) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou (3) perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa,

19. A interpretação das normas legais admite sempre um grau maior ou menor de latitude, pelo que é em teoria admissível que o MP entenda que um Cidadão possa ser sujeito a prisão preventiva porque um outro Cidadão esteja a concretizar o segundo ou a primeira parte do terceiro requisito. Mas tal hipótese deve, por razões evidentes, ser considerada com a maior prudência e contenção.

20. É importante que os Desembargadores decidam estando bem informados. Pode, portanto, ser considerado relevante, pelo Magistrado do MP recorrido, informá-los de contactos feitos por terceiros com outros terceiros, se e na estrita medida em que tais contactos possam em abstracto ser e tenham em concreto sido de molde a criar perigo de perturbação do inquérito ou de perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. O que se não presume.

21. Nesse sentido, para estes efeitos e dentro desse âmbito, pode ser considerado relevante pelo MP que aos Desembargadores seja dado conhecimento de contactos feitos, ou tentados fazer, tendo em vista perturbar o inquérito (ou podendo perturbà-lo) ou perturbar (ou ser de molde a perturbar) a ordem e a tranquilidade públicas.

22. Mas se assim for, parece evidente que " não se podendo presumir que assim possa ser e, sobretudo, que assim tenha sido tentado que fosse e ainda menos que tivesse sido " o Magistrado do MP recorrido deve durante o Inquérito averiguar se assim foi ou se era de molde a que se criasse o perigo de ter sido ou de continuar a ser.

23. E isto exige seguramente, entre outras diligências e análises, um juízo sobre a personalidade e uma averiguação dos procedimentos de todos os que foram contactados por terceiros, sob escuta ou não, pois se assim não for não se vê que relevância pode ter mencionar tais contactos.

24. Se estas cautelas fossem dispensáveis, podíamos com toda a facilidade cair num verdadeiro Estado Policial clandestino : X sob escuta contacta Y. Y é colocado sob escuta e fala com Z . O que leva a colocar Z sobre escuta e assim sucessivamente.

25. No caso em apreço, foi o que se passou. O Dr. Ferro Rodrigues estava sob escuta; o Dr. António Costa foi escutado a falar com o Dr. Ferro Rodrigues sobre uma reunião com o Bastonário da Ordem dos Advogados; a existência da conversa e as conclusões que dela tirou o Dr. António Costa foram trazidas às contra-alegações do MP para o Tribunal da Relação. E isso aconteceu por ter sido entendido pelo Magistrado do MP que eram factos que contribuíam para justificar a prisão preventiva do Dr. Paulo Pedroso, pois se assim não fosse teriam o mesmo fim que, por hipótese, referências a conversas do Dr. Ferro Rodrigues com a sua Mulher a dias ou sobre ela: o caixote de lixo da História. E com conversas com o Presidente da República, o Ministro Morais Sarmento, o Professor Rebelo de Sousa e outras entidades passou-se algo de equivalente. Ora,

26. Como atrás se referiu, não basta para haver perigo relevante que justifique a prisão preventiva de um Cidadão, que um terceiro fale com alguém. É preciso que o contactado faça, tenha feito ou possa vir a fazer actos ou diligências que sejam de molde a poder perturbar o inquérito ou a ordem e a tranquilidade públicas. Se assim não for, pode ser censurável que alguém faça esses contactos e hipoteticamente faça pedidos ou pressões, mas não será nunca admissível manter alguém em prisão preventiva por causa de perigos que não existem nem têm razões para alguma vez existir.

27. A relevância dos contactos pressupõe, por isso, um juízo sobre a personalidade do contactado ou, então, que ele seja ouvido no inquérito para se clarificar se tal risco existiu ou pode vir a existir. A não ser que se afirme, com consistência, que o contactado algo fez que permite concretizar a noção de perigo justificador de prisão preventiva, o que nem o Magistrado do MP em causa ousou fazer.

28. No caso em apreço, pelo menos o Bastonário da Ordem dos Advogados não foi chamado ao inquérito. Mas, apesar disso, foi referida a citada conversa nas contra-alegações. O que, evidentemente, constitui um juízo sobre a personalidade do Bastonário (e sobre quaisquer das outras pessoas mencionadas) em que está contido implicitamente a tese de existir perigo de que ele possa contribuir para perturbar o inquérito ou perturbar a ordem e a tranquilidade públicas. Pelo menos : porque se tivesse causado tais perturbações seria seguramente objecto de processo crime autónomo, de que não há sinal. E o mesmo se diga de todos os que " ficando com isso o Bastonário honrado pela atitude do Magistrado do MP " foram metidos, por assim dizer, no mesmo saco, ou na mesma escuta.

29. Se nas citadas contra-alegações, ou em quaisquer outros documentos, o Magistrado do MP não tivesse referido as conversas, não teria havido, por definição, qualquer violação do segredo de Justiça no que ao Bastonário (e outras pessoas) se refere, tendo-se evitado para além desta carta aberta muita especulação jornalística e muitos crimes de violação do segredo de Justiça. E, recordando a excelente intervenção do Presidente da República na passada semana, alguns capítulos da novela judiciària teriam sido evitados. Para além disso,

30. Nas suas contra-alegações, o Magistrado do MP transcreveu passagens de frases do Dr. Ferro Rodrigues (que, recorda-se, não era quem no recurso se estava a decidir se devia ou não ficar sujeito à gravosa medida de prisão preventiva) que, se também não fossem transcritas, teriam permitido impedir a prática de muitos crimes de violação do segredo de Justiça. E outros capítulos da novela judiciària.

31. Tais frases não são manifestamente relevantes para averiguar se o Dr. Paulo Pedroso devia ficar detido por causa de perigos de perturbação do inquérito ou da ordem e tranquilidade públicas. Não são sequer de molde a que se possa concluir, com um mínimo de plausibilidade, que a prisão do Dr. Pedroso tivesse o efeito de acabar com a produção de tais frases por parte do Dr. Ferro Rodrigues. E só se assim fosse poderia ter, em teoria, algum sentido transcrevê-las nas
contra-alegações de recurso.

32. Mas essas frases " não sendo preciso ser puritano para o concluir " não são boas para a imagem e para a consideração devidas ao Dr. Ferro Rodrigues, como resulta evidente de comentários produzidos por personalidades de todos os quadrantes e formações morais e culturais.

33. Acresce que são frases que, se conhecidas pela comunicação social, teriam imenso relevo e reprodução, como aliás aconteceu. E um muito qualificado Magistrado, como o que fez as brilhantissimas contra-alegações, não podia desconhecer que com toda a probabilidade o resultado de as incluir no seu texto seria aquilo a que muitos comentadores chamaram um assassinato (ou menos um homicídio na forma tentada) cívico e político de uma personalidade que é, nem mais nem menos, membro do Conselho de Estado e líder do principal partido da oposição. E, mais do que tudo isso, é um Cidadão que tem o direito de não ser vítima - sem necessidade nem pudor - de uma estratégia de chicana processual, ainda por cima de um Magistrado do MP que se deve orientar na sua actuação por altos valores e princípios, como é de exigir e " quero afirmá-lo aqui e agora sem margem para qualquer dúvida - felizmente é timbre dos Magistrados portugueses.

34. Por tudo isto é possível afirmar que o Magistrado do MP não devia ter incluído em peças processuais e muito menos transcrever em contra-alegações referências a conversas ou tentativas de conversas com o Presidente da República, o Ministro Morais Sarmento, o Presidente da Câmara de Lisboa, o Professor Rebelo de Sousa e até o Bastonário da Ordem dos Advogados. E que não deveria ter transcrito frases do Dr. Ferro Rodrigues, em que ele - naturalmente em estado de forte tensão - usou expressões desprimorosas para o instituto do segredo de Justiça, o sistema das escutas telefónicas e até para Magistrados.

35. Ao fazer tais transcrições, o Magistrado do MP não podia desconhecer que mais cedo ou mais tarde tudo isso apareceria na comunicação social, muito provavelmente até - atentos os precedentes - ainda em fase de segredo de Justiça. E não podia desconhecer que qualquer observador minimamente atento, e em especial os Juristas, concluiria das transcrições que, na opinião do Magistrado do MP, as personalidades contactadas poderiam criar os perigos que são legalmente relevantes para efeitos de prisão preventiva. E, finalmente, não podia desconhecer que, como efeito da transcrição das frases do Dr. Ferro Rodrigues, a sua imagem moral e política ficaria profundamente afectada.

36. Ou melhor, se o desconhecesse, o Magistrado do MP em questão não teria então a estrutura intelectual e psicológica e as características morais e profissionais que se exigem de um Magistrado, e em especial de um Magistrado a quem o PGR encarregou de tão complexo e sensível processo. Ou, pelo menos, que tendo características que pudessem levar a pensar que tais riscos pudessem existir, deveria na sua actuação estar sujeito a rigorosas e detalhadas directivas, ordens e instruções que o impedissem de cometer tão graves erros.

-CONCLUSÕES

1. Foram este tipo de factos e só eles, analisados à luz das normas legais também sumariadas atrás, que obrigaram o Bastonário da Ordem dos Advogados e Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem a fazer uma intervenção, que ocorreu na passada terça-feira, 21 de Outubro.

2. Em momento algum pensei e ainda menos exigi, solicitei, pedi ou por qualquer outra forma pretendi que o Dr. José Souto Moura deixasse a curto prazo ou após qualquer prazo, sujeito a condição ou a termo, de ser o PGR. Não o fiz, designadamente, na citada entrevista dada à RTP2. Afirmei " retoricamente " e cito da Sic Online, o Senhor Procurador-Geral tem de pôr termo a isto (violações constantes e impunes do segredo de justiça) ou então alguém tem de pôr termo ao procurador. É tão simples como isto.

3. É verdade que o disse. Mas também, logo a seguir, e por ter sido perguntado se isso significava que estava a pedir o afastamento do PGR, e volto a citar a Sic Online, o bastonário da Ordem dos Advogados reiterou, no entanto, a confiança no procurador-geral da República, que qualificou de "homem sério, determinado, com boa formação moral e que deve estar enjoado com o que se está a passar" . O facto de nenhum outro órgão de comunicação ter sentido utilidade em reproduzir a segunda parte da sentença não pode significar que seja irrelevante. Nós os Juristas sempre soubemos dos cortes cirúrgicos nas escutas; sabemos agora de cortes cirúrgicos nas entrevistas.

4. Nunca afirmei em tal entrevista que as violações sucessivas do segredo de Justiça, e em concreto estas últimas, sejam originadas pela PGR e/ou por Magistrados do MP. Não teorizei sobre quem beneficia com o crime nem analisei quaisquer coincidências. Outros o fizeram, mas sem mandato nem representação minha. Pelo contrário, sempre defendi que podendo vàrias e diversas pessoas violar o segredo de Justiça a todos se deve aplicar a Lei por igual, sejam Magistrados Judiciais ou do MP, Funcionários ou Advogados.

5. O que não posso aceitar " à luz dos normativos legais e dos factos supra-citados, e apesar de ser há muitos anos defensor de profundas reformas no regime do segredo de justiça e de ter feito para o Congresso da Justiça propostas concretas " é esta espécie de tolerância com o crime e de aceitação da impunidade a que vimos assistindo. E afirmo que o PGR tem na sua mão todos os instrumentos para agir, não podendo " em nome de um qualquer princípio da oportunidade - não o fazer. E se os instrumentos são insuficientes (como costuma afirmar publicamente há meses) tem legalmente o dever de agir de modo a permitir que a Ministra da Justiça, o Governo ou a Assembleia da República " se necessário por alterações legislativas " o coloquem com os instrumentos adequados ao combate a esta criminalidade.

6. Nunca afirmei que o Dr. João Guerra seja uma peça de uma engrenagem ou de uma estratégia contra o PS ou que tenha intenções mais ou menos ocultas e censuráveis nos seus procedimentos, designadamente que pretenda atacar ou prejudicar o Presidente da República, um Ministro, o líder do principal partido da oposição e o seu líder parlamentar, o presidente da maior autarquia nacional e Vice-Presidente do maior partido português, ou o Bastonário da Ordem dos Advogados. Outros, a que não passei mandato nem me representam, o disseram em alguns casos, mas ninguém tem o direito de me fazer a mim o que censuram que eventualmente esteja a ser feito ao Dr. João Guerra: atribuir-me intenções que não foram expressas e não existem.

7. Pelo menos no meu caso, posso mesmo assegurar que estou sinceramente convicto de que o Dr. Guerra não teve nem tem essa intenção e que foi sem total consciência de que me estava a ofender e ao que represento que me meteu naquele filme como Pilatos foi metido no credo. Embora de Pilatos se possa até dizer que, indirectamente, com uma lavagem de mãos, ganhou direito a essa imortalidade - e eu nem cheguei a lavar as mãos e se o fizesse era seguramente por causa de nada...

8. Mas o que não posso aceitar é que " apesar da clareza do sistema hierárquico do MP " seja possível que, por falta de directivas, ordens ou instruções, o Dr. João Guerra possa vir a repetir no futuro atitudes deste tipo e com elas a prejudicar de forma muito grave, ilegal, injusta e imoral outros terceiros, como aconteceu com o Dr. Ferro Rodrigues, sem que isso corresponda minimamente a qualquer interesse, ainda que não atendível ou até ilegítimo, da investigação criminal.

9. Nunca afirmei " ao contrário do que num momento menos feliz afirmou o Dr Souto Moura (mas quero pedir-lhe publicamente desculpa de ter dito que isso era um disparate) " que o Estado de Direito não exista em Portugal, apesar das imperfeições que infelizmente o caracterizam no concreto e no próprio sistema normativo.

10. Mas o que não posso aceitar é que se corra o risco de que se instalem em Portugal práticas processuais que são típicas de Estados policiais e contra as quais a Ordem dos Advogados ao longo de décadas sempre se revoltou e lutou: o uso indiscriminado e abusivo de escutas telefónicas, a lógica securitária que às necessidades (quantas vezes apenas hipotéticas ou virtuais) da luta contra a criminalidade subordina os mais bàsicos princípios do Estado de Direito e da legalidade democrática, o uso excessivo e tantas vezes abusivo da prisão preventiva.

11. Venho defendendo (e com isso ganhando poderosos adversários e até inimigos) que à Magistratura do MP deve continuar a caber a direcção da investigação criminal e os poderes e missões que nesse âmbito resultam da Constituição, do Estatuto do MP, dos códigos adjectivos e de outras normas. Nomeadamente, defendo que o MP deve continuar - ou passar a ser, quando assim não seja - o titular independente da acção penal, quem dirige a investigação criminal, quem decide o que deve ser transcrito de escutas telefónicas, quem tem poder de fiscalização da PJ e de outras polícias com poderes investigativos. E que esta acção deve ser controlada dialecticamente pela Advocacia e pela Magistratura Judicial, no âmbito dos respectivos poderes e competências, pois os três corpos constituem o Judiciàrio.

12. Tenho confiança na memória de luta pela Liberdade que habita muitos Magistrados do MP e acredito que o MP como Magistratura, apesar de tudo o que me leva por vezes a ter de reagir, não pode ser comparado a polícias políticas de investigação de Estados totalitários ou autoritários.

13. Mas o que não posso aceitar " e nisso não vai nenhuma falta de respeito, como é evidente " é que o MP se transforme numa colecção de Magistrados todos autónomos entre si, sem cadeia hierárquica, em que possa " eventualmente - um Magistrado exigir, para se ocupar de uma investigação, não receber instruções nem dar informações aos de grau superior e em especial ao PGR.

14. E também não posso aceitar que os Magistrados do MP se transformem em Advogados (e, de novo, nesta comparação só iria um elogio) encarregados da investigação e da acusação, com a independência que nos caracteriza a nós, mas também nos impede de fazer investigação criminal. E nas contra-alegações do Dr. João Guerra vejo sobretudo um Advogado, habitado pelo fogo sagrado das suas convicções e pelo erotismo da batalha judiciària, do que um Magistrado. Se fosse assim, se não houvesse cadeia hierárquica e se não actuassem como Magistrados, não quereria um MP com os poderes que para eles defendo. Teríamos então de mudar de sistema, como muitos e não dos menos ilustres propõem.

15. Conheço o Dr. José Souto Moura há mais de 30 anos e considero-o um Homem sério, bom e idealista, sendo essas algumas das qualidades que mais prezo nas pessoas. Penso que tem de estar enjoado com muito do que se está a passar e sei que considera execrável a violação do segredo de Justiça. Não tenho dúvidas que as suas qualidades de esteta e de jurista não podem ter deixado de o fazer discordar das desnecessárias transcrições de certas frases, para seduzir Desembargadores, que estão nas contra-alegações. E do que tem escrito resulta claro que gostaria de cumprir os seus deveres legais e estatutários e conter, diminuir, limitar, reduzir os casos de violação do segredo de justiça, mesmo nos casos em que objectivamente ocorrem para ajudar a investigação.

16. Mas não sei como o Bastonário da Ordem dos Advogados poderia aceitar que, à luz destas experiências, tendo presente os instrumentos legais de que dispõe e o poder/dever de propor alterações legislativas, não actuasse com a determinação exigível. Mas nunca seria eu quem teria em cada momento o poder/dever de o levar a agir.

17. Finalmente, que vai longa esta carta aberta, estou perfeitamente consciente, meu caro Amigo e Ex.mo Senhor Procurador-Geral, de que seria muito mais cómodo para mim aguardar serenamente que acabe o ano e dois meses que falta para voltar à minha condição de simples Advogado e assim terminar a primeira e última função pública relevante da minha vida. E, para isso, tentar evitar questões polémicas, fazer de conta que não percebo, olhar sempre para o lado onde nada aconteça.

18. Mas não foi para isso que decidi pegar em 3 anos da minha vida, não é isso que me dizem para fazer a generalidade dos meus Colegas e dos Cidadãos que me contactam, e sobretudo não seria assim que cumpriria o primeiro dever do Bastonário, que é o primeiro dos deveres da Ordem dos Advogados que represento : defender o Estado de Direito e os direitos e garantias individuais e colaborar na administração da justiça (art.3º nº1, alinea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados).

19. É o que continuarei a fazer, intervindo na estrita medida e nos termos que me ditar a minha consciência e os conselhos amigos (como os que recebi dos meus Colegas Bastonários na passada 5ª feira, em reunião conjunta) de quem sabe mais do que eu.

20. E que se desiludam, portanto, os que pensam que me calarei, assim esquecendo os meus deveres. Não o farei. Doa a quem doer, custe o que custar, pague os preços que tiver de pagar.


Peço-lhe que aceite, Senhor Procurador-Geral e meu caro Amigo, os sinceros cumprimentos de muita estima e da mais elevada consideração do

José Miguel Júdice

Lisboa, 26 de Outubro de 2003

 

Júdice lança ataques cerrados ao procurador João Guerra

Casa Pia"Actuação do Ministério Público é grave, ilegal e imoral"

Jornal de Notícias - 27.10.2003

O magistrado do Ministério Público (MP) que lidera a acusação no processo Casa Pia, João Guerra, "não podia desconhecer" que a transcrição das escutas telefónicas a Ferro Rodrigues e a outros elementos do PS "apareceria na comunicação social" e "muito provavelmente em fase de segredo de justiça", dados "os precedentes" conhecidos em Portugal.
É o bastonário da Ordem dos Advogados (OA), José Miguel Júdice, quem o diz numa carta aberta ao procurador-geral da República (PGR), Souto de Moura, ontem à noite divulgada na página Internet da OA. Uma carta dura, que ataca ferozmente João Guerra e relembra os poderes do PGR relativamente aos seus subordinados magistrados, entre eles o que lidera a acusação no caso de pedofilia.
Júdice diz não poder aceitar um MP transformado "numa colecção de magistrados, todos autónomos entre si, sem cadeia hierárquica".E muito menos "que - apesar da clareza do sistema hierárquico do MP - seja possível que, por falta de directivas, ordens ou instruções, o Dr. João Guerra possa vir a repetir no futuro atitudes deste tipo e com elas prejudicar de forma muito grave, ilegal, injusta e imoral outros terceiros (...) sem que isso corresponda minimamente a qualquer interesse (...) da investigação criminal".

 

Jornal de Notícias - 08.02.2004  
       
José Miguel Júdice, bastonário da Ordem dos Advogados, reagiu com ironia ao facto da notícia ter sido divulgada, em primeiro lugar, pela TVI, antes de ser dada a conhecer ao arguido e aos seus advogados. "Mas admirar-me-ia se fosse diferente. Se os advogados ou o arguido soubessem primeiro. Era sinal que o país tinha mudado", disse, ao JN, José Miguel Júdice, considerando também que a saída, quase em simultâneo, do Tribunal de Instrução Criminal (TIC), dos procuradores, do juiz e dos investigadores deveria ter sido evitada. "Não acredito que tivessem decidido em conjunto. Se o fizessem era gravíssimo. Mas para evitar este tipo de interpretações é que digo que o Ministério Público devia estar situado num sítio diferente. Até devia ter uma saída autónoma", concluiu.

Filme policial
O dia de ontem teve contornos de um autêntico filme policial. Rui Teixeira chegou ao TIC às 19 horas, mas estacionou a viatura junto às instalações da PJ, seguindo escondido na caixa fechada de uma Renault Express. Minutos depois, chegou ao tribunal o inspector-chefe Dias André, seguido de mais dois investigadores. Já se encontrava no edifício João Guerra e as procuradoras que o têm acompanhado neste processo.
Saíram todos minutos depois da uma hora da manhã. Rui Teixeira e João Guerra escondidos na mesma carrinha, enquanto Dias André e os inspectores abandonavam o edifício num Volkswagen cinzento.
Acto contínuo, o jornalista da TVI, que se encontrava num grupo de profissionais da comunicação social onde estava também o jornalista do JN, afastou-se do grupo e comunicou que ia entrar em directo. Anunciou então que Carlos Cruz iria continuar em prisão preventiva.

 

Jornal de Notícias - 07.04.2004
      
As contas bancárias do maior partido da Oposição fazem parte de um anexo do processo Casa Pia. Foram incluídas no Verão do ano passado, depois do Ministério Público ter solicitado ao Banco de Portugal a informação de todas as contas bancárias em que figurasse o nome de Paulo Pedroso.
As contas foram analisadas, mas as que pertenciam ao PS nunca foram desentranhadas. Continuam no processo Casa Pia, embora não exista qualquer informação relativa à análise do seu conteúdo.
Vera Jardim, porta-voz do PS, garantiu, ao JN, que desconhecia a situação. "As contas de um partido num processo de pedofilia é, pelo menos, insólito", afirmou, garantindo que "só por lapso se pode explicar o que não tem explicação". "As contas do PS estão no Tribunal Constitucional, como têm de estar todas as contas dos partidos. E embora entenda que o Ministério Público pretendesse as contas pessoais dos arguidos, penso que tal situação devia ter sido rectificada, quando depararam com as contas do PS", acrescentou o dirigente socialista.
José Miguel Júdice, bastonário da Ordem dos Advogados, foi mais mordaz. Manifestando-se "espantado", o bastonário disse já não saber "se foi de propósito ou se foi o crime da incompetência"."Afinal, o que disse do procurador João Guerra é muito pouco. O desleixo e a forma como foi conduzido este processo em termos de investigação criminal são chocantes. É inconcebível", concluiu.

 

O Procurador-geral tem de investigar a sua casa

Jornal de Negócios - 15.09.2004

Por:  Pedro S. Guerreiro

Há alguns meses, Júdice disse que quando se violasse o segredo de Justiça, "cadeia com eles". E agora? "Era uma frase de retórica. O que eu queria dizer é que é um crime, logo as pessoas têm de ser punidas. Se não é crime socialmente, então acabe-se com o crime. É como o problema do aborto - ou é penalizado ou é despenalizado. Se é penalizado, as pessoas devem ser condenadas."
Neste sentido, "o caso do segredo de Justiça é paradigmático. Viu-se agora, com a assessora do Procurador-geral da República. É óbvio que tinha acesso ao processo ou a pessoas que tinham acesso ao processo. Há coisas que ela declara que só são possíveis por violação de segredo de justiça." O bastonário prossegue: "Toda a gente sabe que a violação do segredo de Justiça é sistemática, endémica, usada como instrumento de investigação criminal. Quando se levam jornalistas a um barco para alto mar para apreensão de droga, está-se a violar o segredo de Justiça." E no caso das cassetes do Correio da Manhã? "Tem de ser investigado. Na questão da tal senhora, não tenho dúvidas nenhumas de que vai ser investigado. É um grande teste ao senhor Procurador-Geral. Se este processo fica em águas de bacalhau, pedirei formalmente a substituição do senhor Procurador-geral. Ele é autónomo do poder político, é o chefe de uma estrutura hierárquica, ele é um homem sério. Portanto, ele tem de investigar a sua casa, porque se não for capaz, então deixou de haver razão para haver PGR." Mas "há muito mais gente que fala nas cassetes. Eu não ouvi as cassetes mas ouve jornalistas que me contaram frases que lá constam que são horríveis, de pessoas ligadas à investigação. O facto das cassetes terem sido roubadas não invalida que a investigação criminal seja feita. Ou pelo menos que se tirem as conclusões. Vamos imaginar que um investigador da Judiciária ligada ao processo Casa Pia violou o segredo de justiça. E vamos imaginar que não é possível legalmente - e a jurisprudência não é clara - usar as gravações como instrumentos de prova. Mas é possível afastar da investigação criminal pessoas que não estiveram à altura das suas responsabilidades.

 

"Incomodidade Deontológica" Afasta Proença de Carvalho da Defesa da Casa Pia

Público - 29.04.2004

A discordância na atribuição das indemnizações aos menores que terão sido alvo de abusos sexuais na Casa Pia de Lisboa antes do fim do julgamento, poderá ter sido um dos motivos que levou ao afastamento do advogado Daniel Proença de Carvalho da equipa de advogados assistentes do processo, apurou o PÚBLICO.
As razões que contribuíram para que o causídico decidisse abandonar a defesa dos menores, foram comunicados exclusivamente ao bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice. O súbito afastamento do advogado escolhido para representar as alegadas vítimas de abusos sexual do processo da Casa Pia, está a levantar uma série de interrogações no meio da advocacia e a suscitar todo o tipo de especulações.
A posição assumida por Proença de Carvalho, que apanhou de surpresa todos os membros da Comissão Técnico Científica da Casa Pia, não tem a ver com motivos de ordem de pessoal. "São razões ligadas ao advogado e ao mandato", limitou-se a dizer ao PÚBLICO aquele advogado, salientando a necessidade do "cumprimento do dever do segredo profissional."
Fonte da Ordem dos Advogados adiantou que na origem da "posição radical"adoptada por Proença de Carvalho estará uma situação que lhe terá provocado "alguma incomodidade deontológica."
"Conheço o doutor Proença de Carvalho há 30 anos e tenho dele a melhor opinião do ponto de vista deontológico", disse, por seu turno, ao PÚBLICO, o bastonário José Miguel Júdice, escusando-se a adiantar mais pormenores sobre o assunto.
Também o advogado João Medeiros, que partilha o mesmo escritório do bastonário, resolveu abandonar a defesa dos queixosos no processo da Casa Pia, tendo comunicado a sua decisão, por escrito, a Proença de Carvalho.

  

Souto Moura Criticado por Advogados e Juízes                

Público- 20.10.2004

Por:  António Arnaldo Mesquita

A declaração de Badajoz do Procurador-Geral da República em relação ao processo da Casa Pia gerou estupefacção nos meios jurídicos. José Souto Moura reacendeu velhas polémicas que marcaram este caso e voltou a lançar sobre si fortes críticas dos advogados. Os próprios juízes, através da sua associação sindical, rejeitam quaisquer responsabilidades e recordam que o inquérito era dirigido pelo Ministério Público.
Em declarações ao PÚBLICO, o desembargador Alexandre Baptista Coelho, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, recordou o facto de o processo ter sido avocado pelo PGR e disse: "Se houve falhas na investigação do processo da casa Pia elas são imputáveis ao MP que era a entidade que dirigia o inquérito", acentuou o líder da ASJP.
Os advogados, tanto o actual bastonário, José Miguel Júdice, como os três candidatos ao lugar foram mais contundentes nas críticas ao procurador-geral.
"A posição assumida pelo dr. José Souto Moura é incompreensível à luz das regras e dos princípios do Código de Processo Penal", afirma António Marinho Pinto, um dos três candidatos a bastonário da Ordem dos Advogados. "Se há alguém que tem razões de queixa da forma como decorreu o processo Casa Pia são pelo menos alguns dos arguidos e não as vítimas ou os representantes das vítimas". Segundo António Marinho Pinto, o PGR "fala como se o Ministério Público fosse assistente no processo e não é". "O MP é titular dos interesses punitivos do Estado, é titular dos interesses da sociedade portuguesa (e não das vítimas) em ver reintegrados os valores ofendidos com as eventuais condutas criminais imputadas pelo MP aos arguidos", afirmou Marinho Pinto.
Presunção de inocência
O advogado de Coimbra também não gostou da comparação feita pelo PGR quanto ao estatuto dos arguidos dos processos da Casa Pia e dos Açores sem atender à presunção da inocência. "O dr. Souto Moura fala como se estivessem provados os factos e a culpa de todos os arguidos, quando é certo que alguns deles já foram ilibados por decisão de magistrados judiciais".
"Com estas declarações, o dr. Souto Moura vem, mostrar que existe uma cultura de fundamentalismo justiceiro na cúpula hierárquica do MP, pois o que as suas declarações evidenciam é o que em linguagem político futebolística se denomina mau perder.

15. Adelino Granja - Advogado

Não se pode acreditar em tudo o que se ouve

Tal & Qual - 05.09.2003

"Como posso confiar em 32 testemunhas?", questiona Adelino consciente de que é necessário separar o trigo do joio. Ou, por outras palavras, distinguir quem tem credibilidade suficiente para ser constituído testemunha e, nas suas palavras, nem todos a têm.

O advogado garante que nem todos estão a falar verdade e fundamenta esta sua convicção com um episódio ocorrido no seu próprio local de trabalho, em Alcobaça, quando o escândalo já estava no auge.

"Uma das testemunhas, que ficou conhecida como João A., esteve no meu escritório, desabafou comigo e até chorou. Contou-me tudo sobre o Jorge Ritto e o Bibi e a respeito das casas em Colares e Cascais", conta. "Até revelou pormenores sobre as relações sexuais" que então manteve, continua.

Uns meses mais tarde, foi com surpresa que Adelino Granja o reconheceu na televisão, apesar de o rapaz se apresentar com o rosto disfarçado. Perante as câmaras, ele assegurava ter sofrido abusos sexuais por parte de Paulo Pedroso.

"Acho muito estranho não me ter dito nada. Até liguei para a madrinha dele e ela disse-me que o afilhado nunca tinha referido o nome de Paulo Pedroso. Não acredito nestas denúncias faseadas", conclui o advogado, que confessa imaginar-se algumas vezes no difícil papei dos que estão atrás das grades. 

16. Deputados

Deputados afastam-se de Souto Moura

Diário de Notícias - 22.03.2007

Autor: Pedro Correia

A comissão parlamentar de inquérito ao caso do "Envelope 9", que ontem concluiu o relatório após quatro meses de investigações, censura o Ministério Público (MP) e, sobretudo, a PT, sugerindo que estas conclusões sejam remetidas ao procurador-geral da República (PGR), Pinto Monteiro, "para os efeitos que entender por convenientes". O relatório, que só hoje será discutido e votado na comissão, sublinha a "desatenção" revelada pelo MP no caso da lista de telefonemas de altas individualidades do Estado que foram reunidas ao processo da Casa Pia, em disquetes que só deveriam ter registos do ex-deputado Paulo Pedroso.

Os depoimentos do ex-PGR, Souto Moura, e do procurador João Guerra, em particular, permitiram aos deputados concluir que "se verificou alguma 'desatenção' e 'esquecimento' do Ministério Público". "Relativamente ao comportamento do MP, constatou-se que este, por diversas vezes, solicitou a mesma informação às operadoras de telecomunicações, sem cuidar rigorosamente de saber se a mesma já havia sido remetida ao processo", refere o relatório, redigido pela deputada socialista Helena Terra. Fica expresso, por outro lado, que os deputados não partilham as conclusões do inquérito desencadeado pelo ex-PGR, Souto Moura, quando o caso foi tornado público, em Fevereiro de 2006. Na altura, apurou-se que as facturas detalhadas ficaram depositadas no "Envelope 9", "sem nunca terem sido analisadas, até à sua consulta pelos advogados de dois arguidos do processo".

"Não é possível chegar à mesma conclusão", sublinha o relatório, criticando o antigo procurador. Ficou "inequívoco", para os deputados, que "as disquetes constantes do 'Envelope 9' foram apensadas ao processo [Casa Pia] no dia 26 de Junho de 2003". E também "o ambiente de azáfama, devido ao excesso de trabalho", que reinava na investigação daquele processo.

Como o DN ontem antecipou, o relatório analisa com severidade o procedimento da PT. Para a comissão, "o procedimento em vigor até então não garantia o cumprimento escrupuloso da obrigação de sigilo das telecomunicações" consagrado na lei. "Foi fornecida informação a mais", lê-se no documento.

17. Mário Soares - Ex Presidente da República

Diário de Notícias - 03.08.2010

Crise na justiça

Por: MÁRIO SOARES

1. A falta de credibilidade da justiça portuguesa está a tornar-se muito preocupante. As pessoas conscientes começam a sentir isso de forma irreversível. Ora a justiça, no sentido mais amplo do termo, isto é, todo o processo judicial - juízes, Ministério Públi- co, Polícia Judiciária, advogados, solicitadores, funcionários judiciais -, é o pilar fundamental do nosso Estado de direito, tal como o define a Constituição, e uma das bases principais da nossa democracia. Se perde credibilidade, como tem vindo, repetidamente, a acontecer, é a própria democracia que entra em risco. O que é extremamente grave porque deixa de estar segura a nossa liberdade, como cidadãos livres de um país livre, desde a Revolução dos Cravos.

A crise da justiça - é disso que se trata - é de muito mau augúrio, para o nosso futuro colectivo, pior do que a crise financeira e económica global. Por mais que julguem, em contrário, os economicistas de serviço. O exemplo do que se tem vindo a passar, em Itália, há alguns anos, aí está para o comprovar.

O descrédito da justiça portuguesa não depende, na minha modesta opinião, de as leis serem, eventualmente, más ou confusas. Depende, sobretudo, do arrastamento inusitado dos processos, que é inaceitável, sem que ninguém seja responsabilizado. Resulta também das fugas de informação, divulgadas pelos meios de comunicação social (que têm, di-ga-se, grandes responsabilidades no cartório e bastante impunidade), e do desrespeito total pelo segredo de justiça; dos julgamentos na praça pública, que se repetem, sem que nada aconteça aos responsáveis, e arruínam ou deixam manchas inapagáveis na reputação de pessoas inocentes e honradas; na apetência incontrolável dos juízes e dos representantes do Ministério Público, em aparecer nas televisões a falar, falar sem controlo nem senso, não percebendo que isso só os diminui e desprestigia, perante os cidadãos comuns; e, finalmente, as intervenções políticas, de representantes dos sindicatos judiciais e, sobretudo, do Ministério Público, não para defender os interesses dos seus associados - o que é compreensível, visto ser a sua função -, mas tão-só para visar adversários políticos, o Governo e, às vezes, certos partidos...

Não estou a atacar ninguém, em especial, nem os magistrados judiciais ou do Ministério Público, nem a Polícia Judiciária, em particular. Tenho muito respeito por esses profissionais em geral que, na maioria, considero bons. Sei que é importante separar o trigo do joio. Mas se analisarmos alguns processos mais mediáticos (e não só do processo penal), por um prisma jurídico-político rigoroso, não podemos deixar de concluir que há comportamentos de certos magistrados judiciais e sobretudo, do Ministério Público e policiais, que precisam de ser travados e investigados, para bem e prestígio da justiça, no seu conjunto.

Cito alguns exemplos: o caso Casa Pia, que se arrasta há quase dez anos, com vários julgamentos, feitos na praça pública, visando personalidades políticas e outras - inocentes - sem sombra de uma prova. Só para as desprestigiar política e civicamente. Outro exemplo, no plano desportivo: o caso "Apito Dourado", que se arrastou como uma telenovela, sem produzir qualquer resultado. Ou outros ainda, no plano empresarial: a chamada "Operação Furacão", lançada com a maior publicidade, levando à apreensão de inúmeros documentos em vários bancos importantes e sem que nada de concreto, até agora se viesse a apurar.

Para quê tudo isto? Onde estão as provas contra os visados, acusados nos jornais antes de serem sequer arguidos? Não se obtém qualquer resposta. Quase se diria que o objectivo é desacreditar a justiça e pôr em causa a democracia. É indispensável que estas más práticas sejam denunciadas, acabem e os responsáveis por elas sejam punidos.

2. O processo Freeport durou - se é que acabou? - quase seis anos. Durante esse longo período foram insinuadas acusações contra o primeiro-ministro, José Sócrates. Sem que fossem apresentadas quaisquer provas. Pretendeu-se envolver até a justiça inglesa que, desde o início, afastou qualquer responsabilidade de Sócrates. Mas não valeu de nada. As insinuações prosseguiram, sobretudo em fases eleitorais - muitos escribas de serviço e conhecidos (a que não chamo jornalistas) e comentadores de televisão irresponsáveis tentaram convencer, sem êxito, os portugueses da culpabilidade e da corrupção do primeiro-ministro. Contudo, Sócrates nunca foi sequer interrogado nem ouvido. Algumas vezes teve de responder a perguntas ou insinuações feitas a despropósito por repórteres de ocasião, comandados por quem lhes paga. Uma vergonha!

Finalmente, o processo chegou ao fim. Sócrates nem sequer foi ouvido. Quem o indemniza, moralmente, pela operação de descredibilização de que foi objecto? Recebeu ao menos pedidos de desculpa dos políticos, comentadores ou jornalistas que se deixaram convencer por esta sinistra operação de "linchamento moral"? Que se saiba, não. E deviam tê-lo feito, até porque não estarão livres, um dia, de que lhes possa acontecer o mesmo. Como, aliás, os jornais e televisões que, com bastante inconsciência, se fizeram eco, sem quaisquer provas, da referida "operação".

Surgiu, entretanto, a notícia de que os investigadores do caso Freeport não chegaram a confrontar o primeiro-ministro com 27 questões - que logo foram divulgadas - por falta de tempo. Em quase seis anos...? É uma vergonha. O procurador-geral da República ordenou um inquérito para averiguar por que razão não houve tempo para ouvir Sócrates. Quanto tempo vai durar mais esse inquérito e a que resultados chegará? Mais seis anos? O ridículo é total.

A justiça vai muito mal. O Governo e os partidos têm de se pôr de acordo para que o cancro da justiça não tenha metástases e não atinja a democracia

 

Souto Moura "não tem qualquer função dentro da Procuradoria-geral da República" (PGR).

Jornal de Notícias- 18.08.2004

Mário Soares criticou de forma contundente a manutenção do procurador no cargo. No programa "Sociedade Aberta", emitido ontem à noite na SIC Notícias, alertou que o país está mergulhado numa "crise de regime", da qual só poderá sair se os partidos tiverem um papel determinante e as instituições passarem a funcionar. "Qualquer coisa está podre no reino", ironizou, citando Shakespeare.

Mário Soares recusou-se a  a criticar a decisão de Jorge Sampaio, por não ter demitido Souto Moura, mas foi contundente em defender que o procurador-geral se mantém no cargo em "condições diminuidíssimas", depois de conversas entre a sua assessora, Sara Pina, e um jornalista do "Correio da Manhã", terem sido parcialmente divulgadas no âmbito do polémico "caso do roubo das cassetes".  

"Não percebo como fica", afirmou. O subdirector do Jornal de Notícias, António José Teixeira, recordou-lhe que tanto o presidente da República como o primeiro-ministro mantém a confiança em Souto Moura, mas Soares minimizou esses apoios.

"Vamos ver do que serve essa confiança. Não tem a do país, de certeza absoluta", ripostou, argumentando que o actual procurador não reúne, sequer, "independência" para conduzir o inquérito que anunciou à PGR nem para se inteirar do que se passou na Polícia Judiciária (PJ), na direcção de Adelino Salvado. Recorde-se que declarações do ex-director nacional da PJ sobre o processo Casa Pia também constam das referidas cassetes.

Depois, insiste, o país não quer ouvir  manifestações de  confiança, mas saber como tudo se passou. Isto é, se as cassetes foram ou não roubadas, onde estão, o que dizem, e que violações, como a quebra do segredo de Justiça, não voltarão a ser cometidos pelos primeiros responsáveis em fazer cumprir a lei.
Inquérito ao Parlamento

Para Mário Soares se o conteúdo das cassetes não for divulgado só irá gerar "mais rumores", que provocará a queda da Justiça numa situação de "descalabro e descrédito", sem precedentes.

O país atravessa uma grave "crise de regime", alerta, que só poderá superar se as instituições funcionarem e os partidos assumirem um papel determinante.

"Chegámos a uma altura em que não se pode falar com falinhas mansas. Há anos que se fazem comissões sob comissões. Não se investiga nada. O PS referiu que não está excluído um inquérito dentro do próprio Parlamento. Deve fazê-lo", apontou.

A demissão do ex-director nacional da PJ foi outro dos temas fortes da entrevista. Soares não poupou Adelino Salvado. Ironizando, classificou de "extraordinárias" muitas das declarações proferidas pelo juiz ao "Expresso". Nomeadamente,  a que classifica como conversa informal "com um amigo" as "confidências" do ex-director nacional da PJ à Imprensa. Mais não foram, acusou Soares, do que uma "instrumentalização do jornalista" por Salvado, correspondida por uma passividade do repórter que se "deixou instrumentalizar para vender mais papel".

Para o ex-presidente da República, "o Governo não poderia ter feito outra coisa" se não aceitar a demissão de Salvado.

 

Jornal de Notícias - 20.11.2004

Mário Soares apelou, anteontem, à consciência cívica dos cidadãos como meio para se combater os abusos e a corrupção instalado na sociedade. O ex-presidente da República, que encerrou as Conferências do Porto sobre o 25 de Abril, manifestou-se preocupado com a Justiça e com o clima de "crispação" que se vive em Portugal.
"Vivemos a situação mais depressiva e crispada que conhecemos desde o 25 de Abril", alertou, apontando o "desnorte" na política externa. "A política interna passou, num golpe de mágica, para o fim da austeridade, para um excelente astral, usando a terminologia das revistas de moda", atacou, visando o primeiro-ministro, Santana Lopes. Mário Soares acredita que o país atravessa uma grave crise de confiança, sobretudo na Justiça, que atravessa "o pior momento de sempre". "O que se Ex-Presidente em entrevista à Antena 1

 

Casa Pia: Mário Soares questiona Justiça e escutas

Público- 08.06.2003

Por: São José Almeida

Fortes criticas à investigação judicial e eventual existência de envolvimento dos serviços secretos e até de escutas privadas nas investigações sobre o caso pedofilia, foram expressas ontem pelo ex-Presidente da República Mário Soares, entrevistado por Francisco Sena Santos, na Antena 1.

Manifestando-se convencido da inocência de Paulo Pedroso e lembrando que está solidário com Ferro Rodrigues, Soares questionou-se afirmou: "Só em caso muito excepcional é que eu aceito que haja escutas telefónicas, mas feitas aqueles que há indicios contra eles de criminalidade grave." E sustentou que devem ser "seguidas pelos juizes e com responsabilidades se houver fugas" para defender : "Não podem escutar personalidades públicas. É inadmissível saber-se que o Presidente da República foi escutado. Então e o primeiro-ministro? Então e o presidente da Assembleia da República? Não é possível! Então onde está o segredo de Estado?"

Mas as dúvidas levantadas por Soares foram mais longe: "Quem é faz as escutas? Quem é que as autoriza, sabemos que é o juiz. Depois como é que ela é feita? É na Procuradoria-Geral da República ou serviços ligados à Procuradoria? Ou é a Polícia? Se é a polícia, como é que a polícia faz? Quem são aqueles que estão autorizados a fazer escutas? Como é que as transcreve e quem é que as transcreve? Qual é o segredo que repousa sobre o esses documentos das transcrições? Não se sabe nada disso e depois aparece tudo nos jornais. Isso é que é grave." Para finalmente levantar a hipótese do envolvimento dos serviços secretos e de privados: "E acerca disso ainda havia uma pergunta e fazer: e será que há serviços secretos metidos nas escutas telefónicas? Isso então podiamos dar um salto muito grave. E temos de saber isso, o país tem de saber isso e os deputados tem que discutir isso, porque isso é um problema grave para a democracia. E será que há escutas privadas? Porque hoje é muito fácil com as tecnologias que existem de haver maneira de escutar sem ser o Estado."

Em defesa do segredo de justiça, Soares defendeu o fim do que considera "osmose" entre "certos jornalistas de investigação"e "as polícias" em que "não se sabe depois quem manipula quem". E considerou que a "prisão preventiva tem que só ser feita em casos perfeitamente excepcionais e quando houver o perigo iminente de que as pessoas querem escapar à justiça".

Ainda que afirmando que não comentava as posições do Presidente da República, Soares criticou implicitamente Jorge Sampaio: "A serenidade é desejável, fazer apelos à serenidade, eu tenho que aplaudir necessariamente e à confiança também o faço, agora isso não pode é legitimar - estou a falar agora em abstrato - que se perca o espírito critico ou que pessoas sejam cegas para a realidade, a realidade tem que ser vista tem que ser encarada."passou com o processo da Casa Pia é realmente uma vergonha nacional", afirmou, garantindo que o caso se tornou "numa máquina de fazer ganhar dinheiro aos media".

18. Jorge Sampaio- Ex Presidente da República

Presidente da República Insiste na Aplicação do Segredo de Justiça Aos Jornalistas

Público - 20.01.2004

O Presidente da República defendeu ontem, no discurso que proferiu na abertura solene do ano judicial, no Supremo Tribunal de Justiça, perante largas dezenas de magistrados, advogados e funcionários judiciais, a vinculação dos jornalistas ao segredo de justiça.

"Se há um interesse público na observância do segredo de justiça, dificilmente se compreende que esse interesse público só seja relevante quando a divulgação dos factos por ele cobertos é feita pelos participantes no processo e deixe de o ser quando essa mesma divulgação seja feita por qualquer outro cidadão", afirmou Sampaio, num discurso dedicado na sua maior parte às complexas relações entre a comunicação social e o sistema judiciário, postas em evidência pelo processo Casa Pia.

Jorge Sampaio defendeu a aplicação efectiva do regime vigente do segredo de justiça, que obriga os jornalistas a respeitá-lo, e não uma alteração da lei. "Uma alteração da lei no sentido de englobar, inequivocamente, aquela classe profissional [os jornalistas] mais não seria do que a consagração explícita, no entendimento de muitos, do regime já agora vigente", considerou, antes de afirmar que "não há pior maneira de defender a liberdade de imprensa do que fazer de conta que ignoramos as queixas reiteradamente feitas sobre a matéria e o desencanto dos valores democráticos que elas revelam".

Isto não significa que o Presidente da República seja a favor de restrições à liberdade de imprensa. Perante uma sala cheia de magistrados - entre eles Assunção Esteves, antiga juíza do Tribunal Constitucional e actual deputada do PSD que defendeu recentemente, na Assembleia da República, limites a essa mesma liberdade -, Sampaio sublinhou: "A mais larga crítica de pessoas e de instituições, o mais alargado confronto de ideias e de grupos, a mais irrestrita denúncia de abusos e de crimes, em suma, tudo o que constitui a razão de ser de uma imprensa livre, jamais pode estar em causa".

Na longa e pormenorizada abordagem que fez das relações entre jornalismo e o sistema judiciário, o Presidente aludiu ainda à "opacidade" deste último e defendeu a criação nos tribunais de estruturas permanentes, com profissionais habilitados que dêem informação sobre o andamento e sobre os actos dos processos".

E considerou ser de "estimular o jornalismo de investigação", considerando que "tem exercido uma insubstituível função de controle dos poderes e de denúncia de abusos e de crimes".

As referências ao processo da Casa Pia foram constantes, mas sempre na linguagem indirecta típica de Jorge Sampaio que falou dos "tempos difíceis que atravessamos", em que a justiça "está na primeira linha das preocupações dos portugueses" e "se tornaram clamorosamente patentes inaceitáveis disfunções do sistema".
E as críticas foram equitativamente distribuídas, como também é característico do Presidente, que afirmou: "Hoje, nestes tempos difíceis que atravessamos, é bom que, na reflexão que vem sendo feita pela comunicação social, possa ficar bem claro que, se a Justiça não está acima da crítica, o mesmo se passa com a comunicação social;e que os jornalistas, enquanto tais, não têm virtudes que faltem aos seus concidadãos, nem adquirem, pela sua profissão ou função, qualquer estatuto de maior independência ou isenção".

19. Maria Barroso - Fundadora da Pro Dignitate, Fundação dos Direitos Humanos

Correio da Manhã - 15.05.2004

Por: Pedro Catarino


'Quiseram envolver o meu marido', diz Maria Barroso
Correio da Manhã - Como vê o processo da pedofilia na Casa Pia?
Maria de Jesus Barroso Soares - Tem sido uma telenovela para distrair os portugueses e desviar a atenção dos problemas do País e dos portugueses.

 

Público On Line - 14.07.2003

P. - Alguma vez lhe passou pela cabeça que a situação de Casa Pia se estivesse a viver em Portugal?

R. - Quem teve conhecimento disso não devia ter desistido de lutar. Para que o caso fosse investigado pelo poder judicial. As televisões e os meios de comunicação não se podem sobrepor ao poder judicial.

P. - Pensa que o poder judicial tem actuado bem neste caso?

R. - Não sei. Mas penso que o poder judicial tem que limitar-se ao espaço em que deve efectivamente funcionar e fazê-lo com a veemência, força e autoridade que tem.

P. - Por exemplo: não pode fazer algumas escutas, como fez?

R. - Não podem é os meios de comunicação terem notícia antes que os próprios saibam. É como sucedeu com a Cruz Vermelha: antes de vir o resultado da auditoria feita à CV, antes de nós termos notícia, já alguns jornais diziam o que vinha no relatório. Não pode ser!

P. - No caso da pedofilia pensa que têm havido fugas de informação?

R. - E o que é engraçado é que só dá para um lado. Só aparecem figuras que pertencem a um determinado sector político.

P. - Partilha da tese da cabala?

R. - Partilho da tese de que há uma intenção de denegrir sobretudo um sector político.

P. - Mas isso tem sido feito sobretudo por quem? Pelos juízes?

R. - Não sei, investiguem os senhores.

20. Fialho Gouveia - Profissional da Rádio e da Televisão

FIALHO GOUVEIA

Jornal de Notícias - 02.02.2003

Acho que a prisão não é nenhum estigma. O que vale é a sentença final, até lá todos são inocentes. Sou amigo dele, mas também acredito na Justiça e temos de a deixar funcionar. Relativamente ao caso, estou convencido de que um dos caminhos que a investigação criminal deve aprofundar prende-se com as informações que o advogado Hugo Marçal poderá disponibilizar. Em 30 anos de carreira, não tenho memória de um advogado ter pedido escusa para falar. Enquanto arguido, tem direito a defender-se.

Estou revoltado com isto tudo. O Carlos pode ter muitos defeitos, mas esse não tem com certeza absoluta. Ele tem personalidade para ser o elo mais forte. Sempre que acontece alguma coisa, o Carlos Cruz está metido, só falta culpá-lo pelo 11 de Setembro.Sinto preocupação por esta história ter aparecido depois de ter sido encoberta durante 20 anos. E agora tenta-se tapar e camuflar aqueles que de facto estão envolvidos e que durante duas décadas encobriram esta história toda.

Fiquei estupefacto e tristíssimo pelo Carlos. Não imagino o que esteja a sentir. Ponho as minhas mãos no fogo por ele e pela sua inocência. Conheço a sua calma, a sua vertente de homem de família, o seu carinho pelos mais novos. Respeito muito o trabalho da nossa excelente Polícia Judiciária e dos nossos incorrompíveis juízes, mas desta vez torço para que estejam lamentavelmente enganados. E que se apercebam do engano bem rápido.

Estou estupefacto e revoltado pela forma como isto aconteceu.Sempre tive o Carlos em grande conta, trabalhámos muitas horas juntos e conheço-o em muitos aspectos da sua personalidade. Nunca se detectou nada daquilo de que o acusam agora e continuo perfeitamente convencido da sua inocência. No mesmo dia em que repudiou a prática da pedofilia, disponibilizou-se ao Ministério Público e depois prendem-no com este aparato? Se quisesse fugir, tinha aproveitado a viagem ao Brasil e não voltava.

23. Pio Abreu - Psiquiatra do Hospital da Universidade de Coimbra

Público - 18.10.2003

Como Incriminar um Inocente

A maneira mais fácil de incriminar um inocente é pagar a quem o acuse em tribunal. Demasiado primário e perigoso em casos conhecidos, porque algum dia se poderá descobrir (a não ser que as testemunhas desapareçam sem deixar rasto). Mas existem processos mais limpos. O mais simples é a utilização de fotografias para "reavivar" a frágil memória das testemunhas. 

A identificação por fotografias ou "lineups" (grupos de indivíduos apresentados, um dos quais é suspeito e os outros são engodos) tem sido posta em causa desde que, a partir de 1989, se pôde recorrer ao ADN como prova judicial. Esta prova tem libertado das cadeias americanas centenas de inocentes incriminados, alguns deles nos corredores da morte, outros com anos e anos de prisão. O caso atingiu foros de escândalo, e vários peritos e investigadores têm estudado o assunto.

Cerca de 90 por cento dos inocentes incriminados, foram-no por testemunhas visuais, quase sempre baseadas no reconhecimento de suspeitos em "lineups" ao vivo ou em fotografias. Este era um método clássico na história da justiça americana, mas a sua propensão a incriminar inocentes tornou-se evidente. Nem se tratava de mentira ou desonestidade, Já que as testemunhas estavam sinceramente convencidas do seu acerto na identificação, aduziam pormenores coerentes sobre o inculpado que, às vezes, acabava por admitir o seu "crime". Também não parecia haver manipulação por parte da polícia e procuradores: executavam os procedimentos normais e confiavam neles, embora com o compreensível desígnio de quererem mostrar serviço. O que se passava então? Pura e simplesmente, as memórias e convicções humanas são frágeis, e a apresentação de fotografias ou "lineups" era uma verdadeira ratoeira para as falsificar.

Podendo desfrutar do apoio dos meios imagiológicos e de experiências engenhosamente concebidas, existe hoje uma plêiade de provas científicas que nos podem esclarecer sobre a formação da (e acesso à ) memória humana. Assim, a memória tende a esvair-se, e só a sua recolecção periódica narrada (pelo menos, nessa forma de narração que consiste na recordação interior) a faz persistir na forma explícita. É certo que existem meios de recuperar memórias esquecidas, como a observação de fotografias, a revisita de locais antigos ou ainda a hipnose. Mas estes meios, se recuperam aspectos centrais das recordações (nomeadamente emocionais), também lhes podem acrescentar detalhes que não foram realmente vividos. A própria revivência narrada da memória, a pode modificar de acordo com o interlocutor e o estado mental durante a narração.

Pior ainda, podem existir memórias genuínas que são, pura e simplesmente, induzidas por processos sugestivos banais. O simples resultado de uma informação pode transformar-se na recordação de um acontecimento que, ocorrido ou não, não foi de facto presenciado (existindo aqui uma confusão das fontes). Noutras ocasiões, a memória é composta com detalhes que não pertenciam à mesma situação. Na nossa vida, pouca importância tem isso, e só se descobre o logro quando se verifica que as memórias são implausíveis e originam crendices inusitadas. Mas, em termos judiciais, uma banal distorção da memória pode ter efeitos devastadores.

A apresentação de "lineups" ao vivo ou em fotografias simultâneas tem-se revelado a maior fonte dos erros. Em situações experimentais, quase todos os voluntários que presenciaram um crime (em vídeo) acabaram por incriminar alguém num lineup que não incluía o verdadeiro culpado (obviamente, a percentagem de incriminadores depende das figuras incluídas). Mas se o investigador diz (mentirosamente), que os incriminadores acertaram, eles aumentam o seu grau de confiança na escolha, elaboram mais detalhes sobre o culpado (baseando-se no inocente que incriminaram) e discorrem retrospectivamente sobre as suas "estupendas" capacidades de observação.

Estes estudos foram liderados pelo Prof. Gary Wells, da Universidade de Iowa, que, ao fim de 20 anos de trabalho, se fez ouvir nos tribunais americanos e, a partir daí, por todo o mundo. As orientações recentes propõem medidas que vão desde a composição dos "lineups" até ao aviso prévio de que pode não existir qualquer suspeito no grupo, e confidencialidade na pós-identificação, incluindo a proibição das testemunhas falarem entre si. Em Nova Jersey e no Canadá Já se aceita que o lineup seja administrado por alguém que desconheça o suspeito, a fim de evitar indicações não verbais que influenciem a escolha. Mas, a maior fonte de erro, para além da credibilidade geral das testemunhas, é a falta de cuidado na composição do lineup e a ligeireza com que uma pessoa, presumidamente inocente, pode ser incluída como suspeito.

Dado que estes assuntos são recentes, desculpa-se a sua ignorância pelos ingénuos populistas que dominam os tablóides. Mas não se desculpam as ligeirezas apressadas, incluindo a utilização de fotografias, com que profissionais supostamente competentes e actualizados iniciaram o processo da Casa Pia. Como também não se desculpa a permanente exibição mediàtica dos arguidos enquanto decorre a instrução e as testemunhas vão reconstruindo as suas memórias. O caso português virá certamente a ser estudado como o mais insólito exemplo das consequências nefastas da imprudência.

É urgente clarificar os meandros da acusação. Pelo contrário, a tentativa obstinada de recolher depoimentos vídeo eventualmente seguidos da ocultação das testemunhas (que se tornou viàvel depois da aprovação, Já quando o processo decorria, do Decreto-Lei 193 de 22 de Agosto) ou do seu desaparecimento casual, vai instalar a dúvida permanente. Nunca chegaremos a saber como, entre tantos abusos, as vítimas apenas fixaram os que são agora arguidos, nem se alguém lhes "avivou" a memória e quais os meios utilizados.

Num processo que divide a sociedade portuguesa na base de crenças e suspeitas, ficaremos com esta ferida se não se optar pela clareza e prática límpida do contraditório. Mesmo que sejam absolvidos em tribunal, a suspeita em relação aos arguidos permanecerá para sempre, como permanecerá a suspeita sobre as testemunhas e acusadores. Tudo quanto for ocultação, num processo Já inquinado por todos os lados, vai pagar-se caro na confiança dos portugueses entre si, em relação às suas instituições e à sua democracia.

J.L. Pio de Abreu

Destak -20.02.2009

Ministério Público

Ao fim de 5 anos de julgamento do Caso Casa Pia, o Ministério Público decidiu alterar as cisrcunstâncias -local e data- de dezenas de alegados crimes. As criancinhas talvez se tenham enganado nas datas e locais, só não se enganaram na identificação dos arguidos, aliás, identificados depois de aparecerem na televisão. Ou então, terá sido incompetência do Ministério Público de 2003, negligente a identificar os pormenores que permitissem álibis aos acusados. (Se o leitor for acusado de ter com,etido um crime sem data nem local, nunca se poderá defender).

O esquema é este: você praticou tal crime; se não foi aqui (que se demonstrou não poder ser), foi acolá; se não foi agora (que se demonstrou não poder ser)      foi há 8 dias; se não foi você foi o seu avô. (O lobo terá sempre razões para comer o cordeiro que supostamente lhe sujou a água).

Alguns magistrados do Ministério Público funcionavam assim. Cheiravam quem queriam atingir e sobre ele lançavam uma teia viscosa de argumentos

inconsistentes. Se não conseguissem, restava a televisão para promover julgamentos na praça pública. Até ao trânsito em julgado, decorreriam muitos anos com os acusados a serem consumidos em fogo lento.

(Qual a indemnização que pedirá Carlos Cruz se for absolvido?).

O procurador João Aibéo está a defender a honra do convento. Depois da credibilidade que hoje tem o Ministério Público, só faltava agora que o Processo Casa Pia ficasse em águas de bacalhau. Ao menos que se adie por mais uns anos a decisão final.

Destak -26.10.2007

O palco de Catalina

Catalina Pestana esteve, em 2003, no centro do Processo Casa Pia. Quando este vier a público, saber-se-ão as incompetências, falsidades, manipulações e atropelos que estiveram na sua génese. Mas ela dizia que, por detrás do processo, estava o célebre "terramoto de grau 7". Deste, ninguém saberá.

Catalina voltou a falar. E falou da sua vida, cheia de ingenuidades e ideais românticos marcados pelas pessoas que venerava. A primeira foi o pai, um revolucionário que conspirava no subpalco, enquanto ela subia ao palco para distrair a populaça. A cena é de tal modo enternecedora que marcaria a sua vida.

Mas Catalina, pressionada pelos jornalistas, também voltou a falar de um cidadão inocente - então o porta-voz do Partido Socialista - que ela ajudou a destruir até à decapitação do partido. E fê-lo agora, depois de muitos juízes terem concluído que ele nem sequer devia ter sido acusado. Mas a populaça acredita mais nas manipulações dos media do que nas decisões judiciais.

Catalina continua então no palco a entreter a populaça. Daquela boca só sairá aquilo que já se ouviu e até se acreditou, mesmo que se prove ser falso. Quanto ao terramoto, nada se saberá, pois controlar segredos sempre foi a sua vida. Para lá chegar é preciso descobrir os venerados personagens que ocupam agora o subpalco.

Destak -06.06.2008

Memórias

Hillary Clinton lembrava-se que há 8 anos tinha aterrado, na Bósnia, debaixo de fogo. Um vídeo mostrou que a aterragem fora mais que pacífica. Em Abril passado, mais um prisioneiro americano, encarcerado há 12 anos, foi libertado após o ADN ter demonstrado a sua inocência. A história já se repetiu com milhares de prisioneiros falsamente incriminados por depoimentos verbais que, em geral, estavam prejudicados por distorções da memória.

A nossa memória é tão preciosa quanto frágil. Que o digam os estudantes, que têm de reproduzir vezes sem conta o que querem aprender. Mas essa memória - a memória semântica - é consistente, pois fica marcada em ligações do córtex cerebral. Já a memória dos factos vividos - a memória episódica - processa-se no hipocampo, uma pequena região do cérebro muito flexível e pouco resistente. Graças a ele, podemos "rebobinar" a nossa vida de modo a lembrar com precisão os episódios do dia. Mas o intervalo é curto: passadas 24 horas, os episódios são mais obscuros e, ao fim de alguns dias, é impossível lembrá-los todos.

No entanto, somos capazes de recordar episódios do passado, recente ou remoto. Tal só acontece porque eles são lembrados repetidamente e assim os colocamos, tal como os estudantes, nos neurónios corticais. Mas o que então recordamos já não é o episódio original; é antes a última recordação dele. E de lembrança em lembrança, algo se perde, algo se acrescenta. É por isso que a memória é pouco fiável. Hillary Clinton prejudicou-se a si própria. O pior é prejudicar os outros.

Destak -17.10.2008

Abusos

Desde há 5 anos que se assiste, em Portugal, a um fenómeno epidémico. Depois de um divórcio onde exista um filho menor, a mãe começa a congeminar que o seu ex, afinal, era pedófilo.

Passa a pente fino o tempo que conviveram com a criança. O pai dormia com ela? Dava-lhe banho? Tocava em certas zonas? Beijava-a? Abraçava-a? Dedicava-lhe atenção? Tudo o que antes era bom, pela partilha de cuidados, torna-se agora o pior dos crimes. E não faltarão ocasiões que possam ser interpretadas à luz desta nova visão dos acontecimentos.

O passo seguinte é inquirir a criança depois da visita ao pai. É preciso ser perverso nas perguntas, mas o interrogatório dirigido estimula a imaginação infantil e, na ânsia de tornar a mãe feliz, ela admitirá alguns dos comportamentos indagados.

É então a vez de consultar pedopsiquiatras. Se alguns não vêem o mal que a mãe vê, há sempre quem aceite colaborar, ajudando a construir uma história de abuso e dispondo-se a fazer um relatório. Se a leitora estiver interessada, posso recomendar algumas instituições e profissionais que o farão alegremente.

Resta fazer a queixa. Uma vez que o crime é público, o respectivo Ministério encarrega-se dela. Nesta altura, já as perguntas da mãe, suas amigas, tias, avós, psicólogos e polícias construíram uma história consistente que se pode levar a tribunal. Sem provas para além do que se conta que contam, o ex pode ser absolvido. Mas a vergonha e a tormenta por que passou são vingança suficiente.

 

 

24. Manuel Villaverde Cabral - Investigador e Professor Universitário

Diário de Notícias

Ultraje à  Justiça

Era para voltar esta semana à Constituição europeia mas, infelizmente, os ultrajes cometidos no processo da Casa Pia obrigam-me a regressar à crise da justiça. Bem tentou o Presidente da República desvalorizá-la, mas lamentavelmente não se trata de mera "novela judiciària" e sim de uma crise agónica que está a minar a pouca credibilidade que resta ao nosso sistema constitucional.

Na realidade, o que está a acontecer é que, por razões que afinal só eles conhecem, os magistrados envolvidos neste processo se convenceram da culpabilidade dos actuais acusados. Exultando com a notoriedade que o processo lhes trouxe, não escondem o júbilo de ter deitado a mão a um punhado de "pessoas importantes".

Pior, cederam sem pudor a um espírito justiceiro que lhes tem faltado em muitas outras ocasiões e encarniçaram-se contra os acusados, submetendo-os não só ao vexame de intermináveis prisões preventivas como à revelação cirúrgica de informações sujeitas ao chamado segredo de justiça. Não há, da minha parte, duplicidade de critérios. O que digo deste processo é o que sempre disse da justiça em Portugal: não funciona!

Acredito que os magistrados estejam genuinamente convencidos da culpabilidade dos acusados. A verdade, porém, é que não foram capazes de reunir provas convincentes. Se tivessem tais provas, Já as teriam exibido e não é provável que elas venham a surgir quando a pista estiver fria.

O prolongamento das prisões preventivas Já não passa de um ultraje à justiça. Se estão convencidos de que os acusados são realmente culpados, que os magistrados façam a prova disso em tribunal!

Na minha opinião, o que acontece é que, de forma geral, o sistema de justiça português não está preparado, nem técnica nem humanamente, para investigar processos complexos e delicados como este.

O sistema está habituado a dispor das pessoas como quer e a proferir sentenças sem muito trabalho nem cuidado. Em caso de complicações, o habitual é, como sabemos, deixar os processos prescrever.

A profunda irritação corporativa demonstrada pelas magistraturas, encabeçadas por um Procurador-geral que há muito mostrou não estar à altura das suas funções, é o resultado dessa incompetência generalizada do sistema para apurar a verdade com rigor e isenção.

Os ultrajes cometidos nos últimos tempos _ desde o segundo acórdão do Tribunal da Relação, que apenas serviu para tentar destruir o efeito do primeiro, à divulgação selectiva de escutas telefónicas sem relevância aparente para o processo _ são puros actos de despeito e vingança dos magistrados contra intervenção do Tribunal Constitucional. Aquilo que Ferro Rodrigues e outros colegas do deputado Paulo Pedroso fizeram é o mesmo que faria qualquer pessoa normal para ajudar um amigo em dificuldade. Se foram longe demais e prevaricaram, então processem-nos. O que não é lícito é as magistraturas abusarem do seu poder para se vingar.

Quanto à cumplicidade da SIC na divulgação de "segredos de justiça" destrutivos para aqueles dirigentes do PS é altamente suspeita. Uma coisa é a busca de audiências; outra é a interferência directa no caso.

Dito isto, Ferro Rodrigues não é uma "pessoal normal"; é o dirigente máximo do principal partido da oposição e, neste momento, Já não tem condições para continuar à frente do PS.

É mais um lamentável efeito colateral desta crise agónica.

Manuel Villaverde Cabral

 

25. João Pedro Henriques - Jornalista

Público-11.11.2003

D. Miguel, Otelo, Catalina - a Mesma Luta

No paí­s da dra. Catalina Pestana isto seria como no tempo do rei D.Miguel. Sua Majestade resolveu uma vez um problema de pedofilia em tempo record: dois dias. A provedora, que sabe história, recordou o episódio, elogiosamente, o que se verifica lendo o PÚBLICO de domingo passado, 9 de Novembro: "O rei D. Miguel deportou para a índia um afilhado seu que abusou sexualmente das crianças da Casa Pia.  

Isto é interessante, permite ver que nem tudo na República é mais célere que na Monarquia, e que os reis, mesmo absolutistas, percebiam que nem os seus afilhados e compadres tinham o direito de abusar dos que viviam ao cuidado da realeza, na real Casa Pia". Explicou ainda a provedora que a decisão do rei foi tomada "em dois dias", rapidez que manifestamente a entusiasma.

No paí­s da dra. Catalina as coisas resolver-se-iam assim: em dois dias. Um "poderoso" absolutista e iluminado decretaria o exí­lio de um alegado pedófilo sem ninguém lhe dar o direito a um processo judicial, a um julgamento, a um advogado, a uma investigação judicial, a um recurso, a protestar no espaço público - a nada. Exí­lio com ele e siga a Marinha! A "celeridade" de que a provedora gosta é esta. A "celeridade" decretada por um "poderoso" - no caso um rei absolutista.

Mas há mais: gosta desta "celeridade" porque nesse tempo, no do rei D. Miguel, só havia um lado na barricada dos "poderosos" - o lado do rei. Agora, infelizmente para Catalina, há mais lados: o daqueles que acusam; e o daqueles que se defendem; Ora isto faz muita confusão à  provedora. Ela não se conforma com esta triste realidade: "Nem tudo na República é mais célere que na Monarquia."

Infelizmente, a dra. Catalina parece padecer do mesmo mal que o dr. Rui Frade diagnosticou a Carlos "Bibi" Silvino: "amnésia lacunar". Sabe de história muito antiga; e sabe de história muito recente ("desde o ano 2000 que havia informação de que algo errado se passava", disse, segundo a mesma notí­cia do PúBLICO). Não sabe, porém, da história contemporânea (últimos 10, 20, 30 anos) da Casa Pia.

Quer dizer: sabe do que lhe contaram (as histórias de D. Miguel); não sabe do que tinha obrigação de saber (porque tem uma ligação muito antiga à  Casa Pia, onde aliás Já tinha ocupado cargos dirigentes). Por outras palavras: em questões de Casa Pia, a provedora tem um passado. Mas não somente nessas questões. Tem outros passados - na polí­tica, por exemplo. Há quem não se esqueça do seu entusiasmo pró-Otelo Saraiva de Carvalho.

Não foi, note-se, uma coisa de semanas ou de meses; foi de anos. Percebe-se, agora, porquê: o "capitão de Abril" admirava a eficácia dos mandatos de captura em branco; a dra. Catalina admira reis como D. Miguel, que resolviam problemas de pedofilí­a em dois dias. Catalina Pestana adere a D. Miguel como, séculos depois, aderiu a Otelo, e, como agora, adere ao seu papel (concessionado pelo ministro Bagão Félix) de suposta porta-voz das ví­timas da Casa Pia: utilizando o populismo como instrumento de manutenção no poder.

Chegando aqui, importa que alguém faça à  provedora a mesma pergunta que o procurador João Guerra fez a Paulo Pedroso, sobre Ferro Rodrigues: "Acredita no Estado de Direito democrático?"

P.S. - Já o dr. Bagão Félix, pelo seu lado, está completamente à -vontade. Se algum azar o forçar a substituir a dra. Catalina, é óbvio que Já tem uma solução alternativa à  altura: nomeia o dr. Pedro Namora. D.Miguel, Otelo, Catalina, Namora, Bagão - é tudo a mesma luta

26. António Garcia Pereira - Advogado

Carta ao Presidente da República

Exmº Senhor

Dr. Jorge Sampaio

Ilustre Presidente da República

Palácio de Belém 

 

Lisboa, 2 de Março de 2004 

Excelência, 

Ao abrigo do constitucionalmente consagrado direito de petição (artº 52º, nº 1 da Lei Fundamental), bem como do direito natural à mais profunda das indignações,    dirijo-me por esta via  enquanto Advogado e enquanto cidadão a Vª Exª para que finalmente defina uma posição e tome as medidas que lhe competem, a fim de repôr a normalidade do funcionamento das instituições e de garantir o respeito pelos mais basilares princípios do Estado de direito democrático em que é suposto que vivamos. 

Na verdade, após ter-se tornado público que o Sr. Procurador Geral da       República - nomeado por Vª Exª e perante Vª Exª responsável - na ânsia de proteger, a todo o transe e à "boa" maneira de todos os Estados anti-democráticos, os interesses da investigação a cargo do Ministério Público, se terá permitido impôr um verdadeiro "estado de sítio" em matéria de alguns processos penais, é toda a consciência democrática  (de que Vª Exª tanto amiúde se invoca como defensor e repositário) que exige ao Presidente da República que diga, de uma vez por todas, e alto e em bom som, que não é de todo admissível o que se está a passar.

Que não é de todo possível fazer parar voluntária e intencionalmente a investigação de certos processos penais pelo "motivo", na pior das modalidades de um ilegal e inconstitucional "princípio de oportunidade", de que a prossecução dessa investigação não convirá aos interesses tácticos ou estratégicos do Ministério Público noutro qualquer processo.

Como também que não é de todo admissível escolher à partida para dirigir o  inquérito desses outros processos penais tidos por "incómodos" ou "perturbadores" o concreto magistrado do Ministério Público que ... precisamente é o mesmo titular do outro processo crime que ele não pretende que seja "incomodado" ou "perturbado" ! 

É que tudo isto rigorosamente nada tem a ver com qualquer respeito ou defesa das vítimas ou da verdade dos factos, mas antes com um artificioso e ilegal reforço de armas do Ministério Público, o qual assim parece até demonstrar que, com respeito pelo princípio da igualdade de armas, não conseguirá impôr-se pela capacidade técnica e pela eficiência da investigação, precisando, pois, deste tipo de "ajudas". 

Deste modo e relativamente à circunstância gravíssima de o Sr. Procurador Geral da República se permitir violentar a legalidade para apoiar ou reforçar o Ministério Público, chegando ao ponto de determinar, contra lei expressa, e violando grosseiramente o princípio da legalidade, a paralisação dos inquéritos em que sejam visados e/ou arguidos testemunhas de um outro processo e de escolher para dirigir tais inquéritos, novamente em violação da lei e do basilar princípio do "magistrado natural", o já incontornável Sr. Dr. João Guerra (ou seja, precisamente quem se sente "perturbado" ou "incomodado" com os ditos processos), tudo isto numa lastimável demonstração de como se bateu no fundo em matéria de respeito pelos princípios e pela legalidade democrática, é absolutamente indispensável e urgente que Vª Exª esclareça de vez qual é afinal a sua posição, como eu daqui o insto abertamente a fazer

E não vale sequer a pena  Vª Exª pretender escudar-se nos  infelizmente já habituais "apelos à serenidade e à não tomada de posições a quente", que serão porventura a melhor forma de alguém com especialíssimas responsabilidades se eximir airosamente a elas mas que só servem para agravar os problemas. Estes atingiram hoje, e sobretudo com os mais recentes desenvolvimentos, uma gravidade tal que já se não compadecem com mais hesitações e tergiversações - é que quando é a legalidade democrática mais basilar que está em causa não pode haver lugar a critérios de oportunidade, como todos os verdadeiros democratas deste país bem sabem e sempre praticaram ! 

E das duas, uma: ou Vª Exª não aceita estas tão ostensivas quanto escandalosas violações do Estado de Direito democrático e di-lo e mostra-o, sobretudo por gestos e decisões, muito claramente ao Povo Português; ou Vª Exª aceita e concorda, ou pelo menos pactua, com estes desmandos, mas então não terá apenas de explicar ao mesmo Povo - no qual, recorde-se, reside a soberania do Poder que Vª Exª temporariamente exerce ... - que doravante em Portugal e ao pior estilo das "ditaduras das bananas" apenas são investigados os eventuais crimes que o Poder, ou seja, que o Ministério Público e o Sr. Procurador Geral da República entenderem, e apenas da forma, no momento e por quem eles bem entenderem, como terá também de enfrentar a mais firme das oposições e o mais duro dos combates por parte de todos aqueles (e somos muitos) que, tal como sempre nos ensinou o nosso Querido Amigo e saudoso Bastonário e Provedor de Justiça Sr. Dr. Ângelo d'Almeida Ribeiro, consideramos que os princípios não se traficam nem se transigem, e que a subserviência e a tibieza no exercício de um mandato são os piores defeitos daqueles a quem aquele foi conferido por parte dos que nele confiaram !... 

Com os meus melhores cumprimentos, 

António Garcia Pereira 

 P.S. Dada a natureza eminentemente pública quer das questões que aqui abordo, quer das responsabilidades que Vª Exª tem relativamente a elas, e bem assim das medidas que deve adoptar, compreenderá decerto Vª Exª que eu não atribua a esta missiva qualquer natureza confidencial ou sequer, privada e que, consequentemente, me reserve o direito de fazer do respectivo texto o uso que entender mais adequado em defesa dos princípios do Estado de Direito democrático.

 

27. Artur Costa - Procurador Geral Adjunto

 Jornal de Notícias-  05.12.2002

Por: Artur Costa - Procurador Geral Adjunto

 

 Dá a impressão que anda tudo tolo. Quem se tiver debruçado sobre o que se tem visto, escrito, opinado, declarado, desabafado e denunciado nestes últimos dias, fazendo um certo esforço para se distanciar de toda essa "histeria colectiva", como lhe chamou Eduardo Prado Coelho, na passada sexta-feira, na sua crónica no "Público", há-de concluir que o país perdeu a cabeça. Não há dúvida que os factos ultimamente trazidos a lume - refiro-me, evidentemente, aos casos de pedofilia centrados na Casa Pia de Lisboa - são de uma gravidade que não precisa de ser encarecida.Mas daí até à exploração infame e selvagem que se tem feito vai toda a distância que transforma um acontecimento num espectáculo bárbaro. Dá vontade de dizer, lembrando palavras do falecido Mário Castrim a outro propósito, que já não são os crimes dos pedófilos que estão em causa, mas "o espectáculo que eles suscitam".Indecoroso espectáculo, que faz do negro e do nauseabundo, ainda que sob a etiqueta de vera realidade, o folhetim de cordel que alimenta espíritos ávidos da coisa sórdida e chocante.

Aliás, não é exactamente sob o aviso prévio de que vão passar a exibir-se cenas "eventualmente chocantes" que se desperta o apetite para iguarias apimentadas como convém? Óptima oportunidade, pois, para vender mais e melhor e, se possível, gato por lebre, aproveitando a maré afortunada para suplantar o concorrente, palmando-lhe as audiências. "Big brother" ou o folhetim da pedofilia? A casa mais célebre do país ou a Casa Pia? Claro que a comunicação social tem o dever de denunciar situações deste calibre, sendo essa mesmo uma das suas funções que se prende com a realização do Estado de direito, mas daí até à montagem obsidiante de um espectáculo torpe, em que se passa à denúncia de cariz policial, ao julgamento sumário, ao atropelo de direitos fundamentais e de normas deontológicas, expondo- se vítimas de uma forma deprimente (a que preço?), disparando o gatilho contra A ou contra B, explorando-se os ingredientes de violência e de pornografia a todas as horas, e, com isso, provavelmente fomentando-as, vai um salto que transforma uma função numa subversão.

E o pior é ver como mesmo pessoas com responsabilidades embarcam nesta espécie de purga colectiva, com o seu quê de totalitário, demolindo instituições sem critério, condenando sem provas, ameaçando irradiações e até castrações, sugerindo métodos medievais de estigmatização. Enfim, como diria Mário Castrim, é a "sombra de Lynch" que perpassa

28. Eduardo Prado Coelho -Escritor e Professor Universitário (1944-2007)

Público- 07.01.2004

Gato Escondido

De todas as fórmulas que lancei ao longo de 2003, houve uma que teve um êxito muito particular: aquela em que referi o dr. Souto Moura, procurador-geral da República, como parecendo "um gato constipado". Ele foram telefonemas e mensagens, felicitações em plena rua, concordâncias eufóricas, risos felizes. Até o meu amigo Henrique Monteiro, que nas páginas do "Expresso" se apresenta de pompa e circunstância como o Marquês Não Sei De Quê, teve a grande generosidade e liberalismo de dizer que era a única coisa de jeito que eu escrevi ao longo do ano (o que significa que nem mesmo escrevi coisas acertadas quando, certamente por descuido, concordei com ele). Eduardo Prado Coelho, in Público

Donde provinha todo este entusiasmo? As respostas que me davam tinham apenas um tom: "Está-se mesmo a ver." Mas isto adianta pouco. Podia passar pela configuração craniana, mas ia certamente mais longe. Talvez de um certo estilo matreiro, de patas aveludadas, de quem passeia pelos telhados como quem não quer a coisa.
Mas esta forma brincada de dizer as coisas tem também os seus limites. Todos nós sabemos que o processo da Casa Pia devia estabelecer um exemplo de uma nova e modelar fase na justiça portuguesa. Tem sido, bem pelo contrário, o abrir de uma crise sem precedentes. E devemos começar a dizer aquilo que o Presidente da República, dadas as suas responsabilidades na estabilidade das instituições, não pode afirmar: a principal contribuição para o sentimento de crise da justiça que se vive em Portugal não vem nem dos jornais, nem dos advogados, nem do Código existente e das suas redacções infelizes, mas, sim, da Procuradoria-Geral da República. É o senhor procurador Souto Moura e os seus colaboradores, que se julgam Tarzans justiceiros para esconderem melhor a sua manifesta incompetência (o que se consagra na extraordinária figura do juiz Rui Teixeira), que têm vindo a dar uma imagem desastrosa, titubeante, demagógica e impreparada da justiça portuguesa.
As intervenções de Souto Moura, e os diversos comunicados à imprensa que o Ministério Público envia de hora a hora, revelam hesitações profundas, pânicos desmedidos, fantasmas obsessivos, truques retóricos vergonhosos. E existe uma tentativa intolerável de fazer recair o odioso da questão na comunicação social. Ora o mal (como António José Teixeira mostrou muito claramente na SIC Notícias) não está no facto de a comunicação social revelar, mas naquilo que é revelado.
Vamos agora ver se nas imensas horas e páginas dedicadas ao processo não houve tempo nem papel disponível para verificar se os arguidos estavam em Portugal na data em que são acusados de determinados crimes. O que parece passar-se em relação a Herman José (e de que parece haver repetição com Paulo Pedroso ou Carlos Cruz) "deita por terra toda a acusação formulada, não pode senão gerar estupefacção e incerteza quanto à fiabilidade dessa acusação . E quem diz dessa diz das restantes" (como escreve Fernando Madrinha nas páginas do "Expresso").
Vamos agora ver as coisas com calma e ponderação. Mas cada vez mais começa a perceber-se que a primeira vítima do caso da Casa Pia é mesmo um gato constipado... Que ainda vai acabar pelos telhados invernosos com uma paranóia persecutória.


Público- 08.03.2004

A LISTA

Quando o jornalista de "O Independente" me telefonou e começou por dizer que "este telefonema é um bocado aborrecido", ele vinha-me dar uma informação que eu já conhecia através dos meus extremamente eficazes serviços secretos: que a minha fotografia fazia parte das 128 que tinham sido apresentadas aos jovens da Casa Pia para saber se eles reconheciam as pessoas pelos factos de que foram vítimas. Eduardo Prado Coelho in Público

Mas o jornalista estava a dizer inadvertidamente mais alguma coisa: que pertencer a esta lista de "famosos" (com um desconhecido pelo meio, proposto à laia de monumento ao soldado desconhecido) seria algo "aborrecido". E que os leitores dos jornais, sempre fascinados pelo odor do escândalo, e vorazes de carne fresca, iriam ver nesta relação arbitrária de nomes um inventário de potenciais suspeitos, embora estejam lá pessoas como D. José Policarpo (e neste ponto penso que os nossos gatarrões se excederam), o dr. Mário Soares ou o prof. Adriano Moreira.
Ora neste ponto estou inteiramente de acordo com Narana Coissoró: tendo em conta que a caridade bem ordenada começa por nós, teria sido de bom gosto incluir uma fotografia do dr. Souto Moura, o nosso querido e sempre inefável gato constipado. Revelaria algum sentido de humor, coisa de que estas personagens não têm sido pródigas. Mas infelizmente não têm pedalada para tanto.
Não é que a lista não tenha humor em si mesma. O meu amigo Vasco Graça Moura chegou mesmo a comentar: "Até me dá uma certa vontade de rir". E dá. Porque a lista tem algo de manifestamente surrealista. Pertence à categoria das enumerações caóticas, que são longas enumerações de coisas sem relação entre si: "Um conde que cora ao ser condecorado / Uma noiva que diz ai que eu grito" (para evocarmos um grande poeta português).
Mas, como demonstrou Leo Spitzer, nós temos dificuldade em aceitar o puro caos desconjuntado e procuramos sempre a lógica subjacente: e neste caso acabamos por encontrar um sentido, que é a ideia do caos do mundo. Na lista dos imaginativos juízes do Ministério Público, nós só podemos ler duas coisas: ou são todos da ampla família dos pedófilos reais ou potenciais, ou esta lista exprime o caos da sociedade portuguesa.
O mais engraçado é que uma lista que visa, como diz o sempre conspícuo Guilherme Silva, "o apuramento da verdade" parece ter sido feita com a mesma lógica com que as redacções dos jornais elaboram os inventários dos portugueses mais famosos ou dos 100 portugueses mais influentes. Cada um dos presentes na reunião atira um nome, alguma vezes rebolam-se todos de riso ("estou a ver a cara dele quando se vir na lista"), e a dada altura alguém diz: "temos de juntar o Marcelo Rebelo de Sousa que ele anda a falar de mais" e lá fica o nosso professor num vexatório último lugar.
O presidente da Associação Portuguesa dos Magistrados Judiciais, o juiz Baptista Coelho, acha que a revelação da lista se insere "numa estratégia ampla de descredibilização dos instituições". Não lhe parece ocorrer que há certas instituições que se descredibilizam a si próprias. E o Procurador Souto Moura, que ora fala de mais ora fala de menos, tem sido um recordista nesta matéria. Pelo caminho que as coisas tomam, quando deixar de ser Procurador, ainda acaba cronista na revista "Flash".

 

 

29. Vicente Jorge Silva - Jornalista e ex Deputado

www.causa-nossa.blogspot.com

A crise da liberdade


Já sabíamos que o processo da Casa Pia se tinha tornado uma verdadeira caixa de Pandora.
Só não sabíamos, porventura, que era uma caixa sem fundo e um alçapão aberto sobre o vazio. Fomos assim descobrindo o horror da pedofilia, o funcionamento kafkiano do sistema judicial, a instrumentalização política e mediática de uma interminável novela de sordidez moral, o "voyeurismo" que se alimenta da náusea que esse espectáculo vai destilando, o prazer sado-masoquista de vermos arrastados para o esgoto alguns símbolos da nossa auto-estima. Vicente Jorge Silva, in Diário Económico

Em ambiente geral de depressão (que ultrapassa os meros indicadores económicos e projecta já sinais sombrios sobre a própria viabilidade do país), a Casa Pia converteu-se no espelho de um naufrágio nacional, em que à tentação do salve-se quem puder não escapam sequer alguns espíritos ponderados e institucionalmente mais responsáveis. O bom-senso e o sentido do equilíbrio são despejados pelo cano abaixo, enquanto se reforçam as cumplicidades corporativas e se renuncia a destrinçar o trigo do joio.

Diz-se que nas guerras a primeira vítima é a liberdade. Ora, em redor do processo da Casa Pia trava-se já uma espécie de guerra civil entre três dos poderes que sustentam o regime democrático: o poder político, o poder judicial e o poder dos media. Não foi por acaso que alguns agentes políticos e outras figuras públicas decidiram questionar agora a liberdade de imprensa, evitando assim o confronto directo com o poder judicial. Quando a presidente da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais advoga a restrição do direito à informação em nome do segredo de justiça e o próprio bastonário da Ordem dos Advogados desiste de interpelar o Procurador-Geral da República e prefere apelar aos jornalistas para se "censurarem" (sic), isso significa que a tentação do segredo começa a falar mais alto do que a defesa da liberdade.

Se o poder judicial tende a escapar ao escrutínio democrático, como agora sucede, toma-se a causa pelos seus efeitos: o problema estaria não nas arbitrariedades judiciais (cartas anónimas visando o Presidente da República anexadas no processo ou utilização abusiva de fotos de personalidades públicas para identificação pelas testemunhas) mas no facto de essas arbitrariedades terem sido noticiadas pelos media. Já não se discute a amplitude dos prazos razoáveis do "segredo de justiça" ou o conteúdo das matérias a ele sujeitas. Quer-se impor indiscriminadamente o dogma do segredo a todas as situações, seja ou não o seu conhecimento de relevante interesse público. Pouco importa que se trate de factos que são indiscutivelmente notícia ou apenas da exploração reles e sensacionalista de pormenores escabrosos das declarações de testemunhas (destituídas de qualquer relevância informativa e destinadas apenas a estimular e satisfazer o apetite doentio das audiências).

Curiosamente, a tentação censória que agora assaltou alguns espíritos - de resto conhecidos pela sua vocação liberal - não foi despertada pelo segundo motivo, mas pelo primeiro. Como se o sensacionalismo rasca e selvagem de certas televisões e tablóides ditos populares fosse já mais normal ou aceitável do que a revelação dos arbítrios judiciais (que, pelos vistos, deveriam ser mantidos sob segredo em nome do normal funcionamento das instituições democráticas). Assim se instala a confusão de valores. Pior do que isso, favorece-se uma hierarquia de valores em que o sagrado preceito constitucional que estabelece o direito a informar e ser informado pode ver-se sujeito às conveniências estritas de poderes ocultos e não escrutináveis pelos cidadãos. Mete-se tudo no mesmo saco: a liberdade de imprensa e a libertinagem dos vendilhões mediáticos, associando-se a segunda a um efeito da primeira. Não se separam as águas: mistura-se o que é criminosa selvajaria comercial - que deve ser célere e exemplarmente punida pelos tribunais e prevenida por uma Alta Autoridade reguladora, dotada de meios e poderes para o efeito - e o que é o exercício responsável da liberdade de informação - que deve ser salvaguardado como pilar fulcral da própria liberdade.

A liberdade é o bem mais inestimável da democracia, mas também o mais vulnerável e o mais frágil - porque é aquele que não tem preço. Baseia-se em valores e convicções radicais, não em meros códigos de convivência social ou conveniência institucional. A liberdade é também um risco - o maior dos riscos. Em situações de crise ou desorientação colectiva, torna-se o primeiro alvo das desconfianças e recriminações (emitidas, tantas vezes, por quem menos se espera). Suscita a incomodidade e o desassossego, sobretudo nesses momentos críticos em que a paz das almas anseia por refugiar-se à sombra de um poder tutelar que nos dispensaria do conhecimento dos factos e da responsabilidade das decisões. O salazarismo poupou-nos a isso durante meio século e não foram poucos os que, duradouramente, o agradeceram. Pelos vistos, a consciência democrática não amadureceu o suficiente nestes últimos trinta anos para prevenirmos os efeitos perversos das tentações censórias. Sabe-se como começa a censura mas não sabemos como acaba. Evidentemente, não há liberdade sem responsabilidade: é a essência da democracia. Mas responsabilidade sem liberdade é uma ficção querida das ditaduras.

Uma das revelações que a caixa de Pandora da Casa Pia nos trouxe foi que não aprendemos ainda a viver saudavelmente em liberdade. O cinismo dos comportamentos prevalece entre políticos, magistrados e jornalistas. A tendência dominante é para se olharem entre si com desconfiança, desprezo e intenções reservadas, à caça da oportunidade para se manipularem uns aos outros, trocar favores, negociar promiscuidades, conquistar aliados ou ajustar contas com inimigos de estimação. A minha experiência como antigo jornalista no interior do mundo político e o conhecimento que tive do universo judicial quando fui director do "Público" ensinaram-me, a esse respeito, lições amargas.

Raramente encontrei magistrados com o mínimo de formação e consciência democrática sobre qual deve ser o papel da imprensa numa sociedade aberta. Tenho lutado com pouco sucesso para convencer muitos dos meus pares políticos de que só é possível lidar positivamente com a imprensa se se respeitar a ética e deontologia jornalísticas. Finalmente, uma massa crescente de jornalistas parecem empenhados em demonstrar o lirismo quixotesco de quem ainda se bate pelos princípios éticos da profissão. Quer tudo isto dizer que não há nada, então, a fazer? Não: quer dizer o contrário. Que é preciso fazer tudo - a começar pelo princípio, pelo básico. Já que batemos no fundo, talvez seja o momento de erguer a cabeça e discutir a sério a questão. Voltarei ao tema.

 

30. Augusto Santos Silva - Político (Ministro da Defesa)

Público- 08.05.2004

As Respostas a Que Temos Direito


Com o início, na segunda-feira, do debate instrutório, o processo Casa Pia entra numa nova fase. Saber-se-á finalmente quem será levado a julgamento, isto é, se o juiz competente valida ou não a acusação formulada pelo Ministério Público. Não se pode ignorar a perplexidade com que a opinião pública chega a este momento. Esperava-se uma rede de pedófilos, o número de arguidos pouco passa da meia dúzia. Apesar dos meios de investigação, a acusação acaba por depender de testemunhos frágeis e contraditórios. Foi necessária a intervenção do Tribunal Constitucional para que fossem respeitados direitos básicos dos arguidos, como saberem de que concretos actos criminosos eram suspeitos. As medidas de coacção impostas pelo juiz de instrução foram sendo sucessivamente atenuadas pela segunda instância. Não obstante, a comunicação social mais poderosa continuou a encenar para-julgamentos, "condenando" e "absolvendo" sem qualquer pudor. Como é que as pessoas não ficarão confusas? Augusto Santos Silva in Público

Percebo a preocupação do sistema de justiça com este clima. Mas isso não autoriza as tentativas de encontrar justificações a todo o custo. Dizer-se, como dizem qualificados porta-vozes das magistraturas, que a sistemática revogação pela Relação das medidas de prisão preventiva corresponde ao normal funcionamento do sistema ou a naturais divergências na interpretação da lei, é cair numa horrível desumanidade. Ou acaso tais porta-vozes serão incapazes de compreender o que é perder a liberdade meses a fio, antes de qualquer condenação, por uma decisão que afinal se revela desproporcionada?
Não é também tolerável insinuar-se que se "safaram" os detidos que podiam pagar bons advogados, como se a reposição da justiça fosse redutível à "habilidade" profissional dos causídicos, ou como se o consabido facto de apodrecerem nas cadeias pessoas ainda não condenadas (muitas nunca vindo, aliás, a sê-lo), apenas por serem pobres, obrigasse os remediados e ricos, numa espécie de expiação de classe, a sofrerem sem queixume a arbitrariedade. Um caso judicial não é um jogo, é um processo público de apuramento da verdade de factos. Todos quantos, de fora ou de dentro das magistraturas, actuam com base nos preconceitos, obsessões ou humores do momento, ferem o sistema e ofendem a cidadania.
Não menos deplorável tem sido o comportamento dos repórteres que as televisões e alguns jornais têm colocado, como cães de caça, à porta dos tribunais, das prisões e das casas particulares onde a "acção" se passa. É evidente que, desde os acontecimentos que rodearam a libertação de Paulo Pedroso, os restantes arguidos têm procurado o maior recato. Debalde: como bem se viu na saída de Carlos Cruz, quem monta o circo são os próprios (assim se chamam) jornalistas. Que efeito útil de informação se conseguiu com o helicóptero e as motas que perseguiram o carro de Cruz e com a palhaçada dos encontrões entre repórteres, fotógrafos e polícias? Absolutamente nenhum, apenas mais um degrau descido no aviltamento da profissão do jornalismo.
As condições de desenvolvimento do processo judicial melhoraram bastante com a dedução da acusação, a abertura do processo à defesa e a tardia vitória do princípio da legalidade sobre a tentação justicialista. Mas isto não chega e os próximos dias serão decisivos. A pior coisa que poderia suceder, e não apenas aos arguidos, também às instituições do Estado, seria ficar-se com a sensação de dúvida, de caso por concluir ou suspeita por confirmar. Por muito que custe, é preciso encontrar resposta a todas as perguntas que se foram colocando ao longo deste caso.
A primeira e essencial: que crimes se cometeram e quem os cometeu? O abuso sexual de crianças é uma coisa hedionda, ainda mais hedionda quando são crianças desvalidas e institucionalizadas. Quem o praticou merece castigo exemplar, não solidariedade, e cada um de nós que defende publicamente a inocência de qualquer arguido (como eu aqui fiz e repito em relação a Paulo Pedroso) sabe que empenha nisso a sua própria credibilidade. Mas precisamos todos de saber o valor das provas que fundamentam as acusações. E, tratando-se em boa parte de testemunhos, qual o crédito que merecem os seus autores. E, havendo claramente uma estratégia de criação de um "arrependido", Carlos Silvino, em que termos e por que razões jogará a justiça o seu jogo.
Esta é, porém, apenas a primeira das perguntas. Para cada um dos arguidos cuja inocência ficar demonstrada, teremos então de determinar quem o caluniou, e por que motivos, e a mando de quem. E o mesmo para os muitos que o Ministério Público não chegou a constituir como arguidos, mas foram vilmente caluniados - quem e porquê procurou envolvê-los num escândalo político-sexual.
E, depois, qualquer que seja o resultado da instrução e do julgamento, será tempo de reexaminar a investigação e o inquérito. Porque foram feitas aquelas escutas telefónicas e conservados aqueles materiais, anexadas aquelas cartas anónimas, usado aquele álbum fotográfico, porque foram colhidas tão poucas provas não testemunhais, porque foi concedido tanto valor a testes de personalidade tão rudimentares, etc., etc.. E a política de informação - será então altura de explicar a sucessão das fugas de informação e as violações do segredo de justiça, se houve ou não orquestração entre fontes do processo e meios de comunicação social parar criar antecipadamente na opinião pública o sentimento de culpabilidade deste ou daquele indiciado. E poderemos enfim tentar desvendar outros mistérios, os silêncios de anos que se transformaram em fúria justiceira, os supostos amigos e técnicos de apoio às vítimas que afinal tinham tido oportunidade de conhecer e denunciar os abusos, no tempo devido, e se calaram.
Não estamos perante jogos florais de interpretações jurídicas entre ilustres magistrados, nem perante o sinistro triunfo dos poderosos sobre os justiceiros, nem perante as habilidades comparadas de advogados talentosos. Face aos dramas vividos, estas insinuações são repugnantes. A coisa também não é um enredo de telenovela, com o sofrimento, a ansiedade e o júbilo filmados em directo para deleite pornográfico da multidão. Devemos às vítimas, a todas as possíveis vítimas do processo Casa Pia - as vítimas de abusos sexuais, as vítimas de calúnia, as vítimas de crucificações mediáticas, as vítimas de operações de assassinato político e moral - devemos-lhes a procura da verdade. Da verdade dos factos, não dos preconceitos. Da verdade a que só se chega não tendo medo de colocar todas as perguntas. Para conseguirmos as respostas a que temos direito.

 

31. Vital Moreira - Professor Universitário, Constitucionalista e Deputado Europeu

Público 27.05.2003

A manchete de 1ª página do "Expresso" de sábado passado ("Ferro consta do processo") - depois difundida "urbi et orbi" pelas televisões - merece ficar na história deste processo como um dos mais caracterizados momentos de populismo jornalístico, de assassínio de carácter qualificado e de irresponsabilidade política. Vital Moreira in Público

Quando Os Alicerces da República Tremem

Ao contrário dos marinheiros da Antiguidade, a quem a sabedoria, o engenho e a fortuna poderiam livrar de caírem nos escolhos fatais de Cila ou Caribdis, não parece que tenhamos alguma saída airosa para a situação em que nos encontramos depois dos desenvolvimentos dramáticos da semana passada no processo de pedofilia, envolvendo a detenção de um deputado, dirigente partidário e antigo ministro, sem esquecer as torpes insinuações, por mais inconsistentes que sejam (como são!), sobre o próprio secretário-geral do PS.
Já foi dito, mas não é de mais repeti-lo: ou se vem a provar serem verdadeiras as acusações que para quase toda a gente são de todo inverosímeis, e então a partir de agora ninguém dará um tostão furado pela palavra e pela credibilidade dos políticos; ou a acusação se revela insubsistente, e então daqui para a frente ninguém deixará de questionar a credibilidade e a legitimidade da justiça. Por um lado, as pessoas visadas não são uns políticos quaisquer. Se quiséssemos seleccionar meia dúzia de dirigentes políticos a quem ligamos uma ideia de credibilidade, rigor ético e seriedade acima de toda a suspeita, eles fariam seguramente o pleno em qualquer quadrante político.
Vê-los misturados com a infame história da pedofilia, e um deles preso por isso, é de estarrecer os espíritos mais resistentes. Por outro lado, estas não são acusações como qualquer outra, dada a natureza dos crimes imputados e a qualidade e notoriedade dos acusados. Se afinal Paulo Pedroso estiver inocente, dificilmente a imagem da justiça ficará incólume, depois de ter arrastado para a lama irresponsavelmente um dos melhores e mais promissores dirigentes políticos revelados nos últimos anos. A partir daí, qual a credibilidade de todo o processo da Casa Pia, mesmo em relação aos anteriores casos, em que parecia haver indícios consistentes de responsabilidade dos detidos? E como é que foi possível que a justiça se tivesse enganado, ou deixado enganar, de forma tão temerária num assunto tão devastador?
De resto, há mais um efeito colateral igualmente arrasador: de ora em diante, quem é que, se não os loucos ou irresponsáveis, quererá arriscar numa carreira política? Porque a verdade é esta: mesmo que se venha a revelar atempadamente a inocência do arguido, há males que já são pessoalmente irreversíveis, como a humilhação da detenção, o enxovalho da exposição mediática das mais inacreditáveis histórias reveladas não se sabe por quem, os insultos da canalha pronta a abocanhar os políticos que julga caídos em desgraça. Mesmo que venha a ser ilibado, Paulo Pedroso não esquecerá a maquinação alheia ou a negligência grosseira das autoridades de investigação penal que o sujeitaram a esta ordália. E, se for humano, jamais perdoará a quem lhe conspurcou nome e a honra, para além de ter liquidado as suas justas ambições políticas.
Os factos em si mesmos - as acusações e a detenção do conhecido dirigente político - eram só por si suficientemente inquietantes para tirarem o sono a qualquer cidadão interessado pela coisa pública. Mas todos os participantes pareceram apostados em acrescentar gasolina ao fogo. Dificilmente poderíamos imaginar uma tão grande acumulação de acções e declarações levianas e perturbadoras. Assim sucedeu com o magistrado encarregado do processo, que ineditamente se dirigiu pessoalmente ao Parlamento para solicitar o levantamento da imunidade, com a "coincidência" de ser esperado pela televisão, numa exibição mediática que era pelo menos desnecessária.
Num processo já de si altamente mediatizado, só faltava que os magistrados começassem a actuar também para a televisão! O mesmo ocorreu com o procurador-geral da República, que não somente declarou desconhecer escutas telefónicas que afinal existiam como também não se eximiu a alguns comentários de sofrível gosto e péssima oportunidade sobre a reacção, porventura excessiva mas mais do que compreensível, de um dirigente do partido visado. O procurador deveria dar-se conta de que o seu estatuto não é compatível com a entrada no debate político.
É para isso que ele é independente. O mesmo se passou com alguns responsáveis parlamentares do partido do Governo, que em vez de observarem a contenção que as circunstâncias exigem (quem tem telhados de vidro...), não se furtaram a algumas observações de mesquinho mau gosto, como quando insinuaram que o levantamento da imunidade parlamentar era obrigatória - o que não era verdade -, para assim desvalorizarem a digna atitude do arguido em requerê-la pessoalmente.
Particularmente inquietante é o episódio das escutas telefónicas validadas pela autoridade judicial em relação a outros dirigentes do PS além do que estava sob investigação e que veio a ser detido. A letra da lei processual penal poderá não excluir a escuta de não suspeitos. Mas isso não bastaria para ela ser legítima independentemente das circunstâncias. Tratando-se de uma evidente invasão da privacidade das comunicações pessoais, protegida pela Constituição, toda a restrição dessa garantia essencial que é a proibição de escutas telefónicas deve pautar-se pelas normas constitucionais pertinentes, que limitam essas restrições, caso a caso, às situações e à medida estritamente necessárias (princípio da proporcionalidade).
Ora é de duvidar seriamente sobre a necessidade e indispensabilidade de ampliar as escutas telefónicas a terceiras pessoas, ainda por cima tratando-se de dirigentes partidários (por sinal na oposição), em que as escutas se traduzem não somente na violação das comunicações pessoais mas também políticas. O que se esperava que nas suas conversas entre si ou com terceiros Ferro Rodrigues e António Costa revelassem saber sobre as acusações que impendiam sobre o seu companheiro de direcção partidária? Dificilmente se pode atribuir uma tal suposição a ingenuidade...
Numa situação destas tão inédita quanto escandalosa seria difícil esperar contenção dos "media". Mas uma coisa é não esperar "self-restraint" e outra é assistir à mais incontinente exploração da especulação mais fantástica e do "innuendo" mais assassino. Aparentemente, nem mesmo os mais circunspectos e usualmente sérios órgãos de comunicação são capazes de manter a tramontana da lisura e da responsabilidade jornalística. A manchete de 1ª página do "Expresso" de sábado passado ("Ferro consta do processo") - depois difundida "urbi et orbi" pelas televisões - merece ficar na história deste processo como um dos mais caracterizados momentos de populismo jornalístico, de assassínio de carácter qualificado e de irresponsabilidade política.
Primeiro, porque dessa forma brutal se atira lama sobre uma pessoa e um dirigente político com base numa vaga e equívoca declaração de alguém não especificado algures num processo penal. Depois, porque, para lançar uma pessoa às feras de uma opinião pública preparada para assassinar, pelo menos metaforicamente, os políticos não pode bastar que ela seja mencionada por outrem num processo penal, por simples equívoco de identificação pessoal ou por deliberada aleivosia. Como disse há tempos a provedora da Casa Pia, os depoimentos de crianças e adolescentes não são mercadoria cara...
Nestes dias há um peso ominoso sobre as instituições. Ou a degradação da dignidade pessoal e dos "mores" políticos desceu tão baixo que já atingiu o coração da legitimidade política, ou as instituições judiciárias de cuja credibilidade mais depende a saúde do corpo social estão à beira do abismo. Seja o que for, o choque é certo. há muita coisa na vida política portuguesa que não vai ficar como dantes

 

Público- 17.08.2004

O jornalista, o polícia e o procurador

Com o conhecimento das cassetes áudio alegadamente furtadas a um jornalista do "Correio da Manhã", contendo o registo de muitas horas de conversa com os seus informadoras acerca do processo Casa Pia, começam a ser esclarecidas, mais cedo do que se julgava, as circunstâncias que desde o início tornaram esse processo uma permanente fonte de violação do segredo de justiça, de contra-informação e de exploração política, tendo como alvo privilegiado o anterior secretário-geral do PS Ferro Rodrigues e o próprio partido, miseravelmente envolvidos numa campanha mediática de destruição pessoal e política, conduzida com base em supostos elementos constantes do autos. Vital Moreira in Público

Entre os mais militantes órgãos de informação contou-se notoriamente o citado diário, o qual, num dos pontos altos da sua campanha, na edição de 10 de Novembro de 2003, noticiava que Ferro Rodrigues era referido por pelo menos três das alegadas vítimas da pedofilia, e que tinha sido confrontado com esse facto ao ser ouvido como testemunha no âmbito da investigação. A indignada revolta do visado, exigindo da Procuradoria-Geral da República um desmentido da informação do jornal não produziu mais do que um fruste comunicado da assessoria de imprensa de Souto Moura declarando que Ferro não tinha sido informado do teor dos depoimentos de qualquer testemunha, mas sem infirmar a existência, nem a credibilidade, desses alegados depoimentos (os quais, a existirem, não poderiam deixar de ser indignos de qualquer crédito).
Tampouco era manifestada qualquer intenção de investigar a flagrante violação do segredo de justiça por parte do jornal e das suas fontes, sendo manifesto que os elementos que poderiam estar na base das pretensas informações só poderiam ter origem nos meios policiais ou do Ministério Público com acesso aos autos. O pouco que já se conhece sobre o conteúdo dessas gravações revela que entre essas fontes estava o próprio director da Polícia Judiciária, bem como a assessora de imprensa do procurador-geral da República, que subscreveu pessoalmente quase todos os muitos comunicados de imprensa saídos do Palácio Palmela sobre o processo Casa Pia desde o seu início! O caso já fez rolar a cabeça do chefe da Polícia Judiciária. Resta saber o destino do procurador-geral da República.
O caso suscita pelo menos três questões cujo gravidade não pode ser escamoteada.
A primeira tem a ver com o triste estado da deontologia profissional do jornalismo em Portugal. A gravação de conversas mantidas por um jornalista sem informar os interlocutores do registo não é somente um crime punido pelo Código Penal, mas também uma infracção deontológica grave. Que agora se saiba que se trata de uma prática longe de ser rara só torna o episódio mais inquietante. A questão vem recolocar em causa a falta de instrumentos de responsabilização e de punição dos ilícitos disciplinares dos jornalistas. O actual estado de impunidade só pode ser fonte dos piores abusos. O ilícito criminal não pode suprir a ausência de mecanismos de autodisciplina profissional.
A segunda questão relaciona-se com a condenável promiscuidade entre os meios de investigação criminal (e os próprios meios judiciais) com o jornalismo, que as cassetes desviadas, pelo que já se conhece, revelam em todo o seu triste esplendor (há, porém, males que têm externalidades virtuosas...). É evidente que houve personalidades com responsabilidades na investigação ou com acesso a dados da mesma que se prestaram não somente a revelar ou a comentar dados, reais ou supostos, protegidos pelo segredo de justiça, mas também a participar numa operação caracterizadamente política de "assassínio de carácter" de um dirigente partidário, que não poderiam deixar de conhecer, pois podiam acompanhar os seus efeitos devastadores nos jornais, em especial naquele cuja especulação iam alimentando com as suas informações e comentários. Há-de permanecer um mistério insondável a tentação de certos agentes da justiça pela revelação clandestina de dados que funcionalmente deveriam proteger e abster-se de comentar. As agendas dos jornalistas estão cheias de números de telefone comprometedores. Felizmente para os visados não é todos os dias que as suas declarações "off the record" caem na praça pública.
A terceira e mais importante questão decorre da generalizada irresponsabilidade e impunidade com que são encaradas as violações do segredo de justiça, apesar dos efeitos nefastos sobre a investigação criminal e da irreparável lesão que podem causar no bom nome e na reputação de pessoas totalmente inocentes, incluindo as que são envolvidas em processos devido a grosseiros lapsos de identificação ou a cavilosa má fé. É certo que a excessiva latitude do segredo de justiça, quer na sua extensão, quer na sua duração, "convida" ao seu desrespeito, sobretudo quando uma interpretação laxista da lei tem desobrigado indevidamente os jornalistas de o observar. Mas a necessária clarificação e reforma do âmbito do segredo de justiça não pode justificar a sua sistemática violação, sobretudo quando selectivamente apostada na perseguição pessoal ou política, como no caso vertente.
No lamentável comunicado da PGR do dia 9 passado sobre o assunto - o qual curiosamente não aparece subscrito, como habitualmente, pela assessora de imprensa -, Souto Moura apressar-se a declarar que "o suposto material das gravações em causa poderá revelar-se inócuo como prova dos crimes que possam ter sido cometidos com as conversas que hajam sido gravadas ilicitamente". Embora se acrescente que "tal não impede que (...) venham a investigar-se todos os comportamentos relacionados com o caso que tenham relevância penal, daí se retirando as devidas consequências", a verdade é que esta retorcida fórmula deixou muito a desejar quanto à determinação de proceder à investigação que a responsabilização penal dos implicados pela divulgação ilícita de dados processuais reclama.
O mínimo que se exigia era que o Ministério Público procedesse sem demora a uma análise das referidas gravações e à abertura dos necessários inquéritos. O facto de elas não poderem servir como prova penal, por terem sido feitas ilicitamente, não apaga os ilícitos que elas revelam e que possam ser provadas por outros meios. Os que foram vilipendiados, a começar pelo ex-secretário-geral do PS, têm um direito básico a saber quem participou na sua crucificação pública. Seria ridículo, e perverso, que quem protagonizou uma sistemática violação do segredo de justiça, o invocasse agora para impedir a investigação dos suportes materiais da sua infracção.


Não bastasse a sua errática conduta ao longo de todo o processo, incluindo intempestivas e despropositadas declarações informais, a posição de Souto Moura sai especialmente fragilizada pelo envolvimento da sua própria assessora de imprensa nas referidas gravações, tal como mostra a publicação de parte delas efectuada pelo "Independente" na semana passada. Não serve dizer que ela não tinha acesso aos autos, sendo evidente que tinha conhecimento de dados deles constantes, sobre os quais não se inibiu de se pronunciar. O procurador sai irreparavelmente ferido deste triste episódio. Na vida pública é-se naturalmente responsável pelas infracções funcionais dos colaboradores pessoais (responsabilidade pela escolha e pela vigilância). Souto Moura não deveria aproveitar-se da inibição do Presidente da República e do primeiro-ministro em "tirar-lhe o tapete" nesta altura, para não serem acusados de ajudarem à fragilização das instituições judiciárias, quando se aproxima o início do julgamento do processo Casa Pia. Se ele tivesse um razoável sentido de responsabilidades pública, os seus dias à frente da PGR teriam chegado ao fim, por decisão própria.

32. Clara Ferreira Alves - Jornalista

Expresso

A alegada cabala

O demitido director da Polícia Judiciária acha-se vítima de uma «cabala», disse ele aos jornais depois da sua demissão. Aparentemente, um grupo ou grupos de pessoas com interesses inconfessáveis queria dar cabo dele e da sua reputação. E conseguiram, ou melhor, teriam conseguido, alegadamente.

O demitido director da Polícia Judiciária teria sido portanto caluniado. Isto da cabala toca a todos, como se vê, e nunca digas desta cabala não beberei. Porque, num excerto do diálogo das cassetes roubadas publicado pelo semanário «O Independente», entre o demitido director e o jornalista do «Correio da Manhã», Octávio Lopes, também conhecido por o Abutre, ouve-se (lido) o demitido director dizer isto:

«A.S. - (...) Não sei, penso que não, pelos menos umas três. O que eu acho engraçado no Ferro e, nessa perspectiva, no PS, e estou a falar sempre como cidadão, é que basta ter acesso ao processo, porque ele deixa de estar em segredo, e se relatar aí, no seu jornal, os depoimentos, isso é a morte física e moral de qualquer pessoa. Como é que se subsiste a isso? Vai dizer que é uma calúnia, que não é verdade? É uma coisa que aparece logo no princípio do processo, logo ali em Janeiro. Vai dizer que é uma cabala, isto, aquilo e aqueloutro...?

O.L. - No fundo, o sr. dr. está-me a dizer aquilo que já sabíamos.

A.S. - Os factos, quando aparecem, são factos com tal poder de destruição que ele não resiste. O que é que ele vai dizer, diga-me lá? Que é uma cabala?

O.L. - Não pode dizer.

A.S. - Como é que se prova uma coisa destas?

O.L. - Tá bom dr.... obrigadíssimo.

A.S. - Portanto, acho que basicamente ele está num beco sem saída. Está a ganhar mais seis meses, tá bem, mas para quê?
O.L. - Não se percebe bem, talvez para minimizar os estragos em relação ao próprio PS, digo eu.

A.S. - Tá bem, talvez, mas de qualquer das formas é a crónica de uma morte anunciada (...)».
Este belo bocado de prosa, de grande dignidade e escrúpulo profissional, tanto para o demitido director da Judiciária como para o jornalista do «Correio da Manhã», também conhecido por o Abutre, demonstra a utilidade e inutilidade da palavra cabala. Agora, poderíamos dizer do demitido director: «O que é que ele vai dizer? Que é uma cabala?». E disse.

O que eu acho engraçado no demitido director da Judiciária, e estou sempre a falar como cidadã, é que basta ter acesso a estas gravações dos seus diálogos com o jornalista, e tomá-las como alegadamente verdadeiras, e depois arranjar um jornal que as publique, para se obter a morte moral do demitido director. Não vou, sempre falando como cidadã, tão longe como o demitido director foi, e não falarei em morte física, embora ache que, se eu me chamasse Ferro Rodrigues e ouvisse a leviandade criminosa com que o então director da Judiciária insinua acusações graves, gostaria de vir um dia a pendurar o escalpe do demitido director na minha cozinha.
A verdade é que o demitido director se portou como um abutre, e mesmo quando o jornalista do «Correio da Manhã», também conhecido por o Abutre, quer terminar o diálogo com a frase «tá bom, dr., mais uma vez obrigadíssimo», o demitido director insiste: «Portanto, acho que basicamente ele está num beco sem saída, está a ganhar mais seis meses, tá bem, para quê?»
Sempre falando como cidadã, o que é que o demitido director tem a ver com isto? O que é que podemos esperar de um homem que dirigia a Polícia Judiciária, um dos «pilares do regime», e que desata a produzir declarações de insinuação criminosa como se fosse um vulgar cidadão? E repare-se naquele «mais uma vez obrigadíssimo», o que denuncia uma relação de profícuos diálogos e troca de informações entre o cidadão Adelino Salvado, que, por mero acaso e coincidência, era director da Polícia Judiciária, e o jornalista do «Correio da Manhã», que por acaso achava que estava a fazer investigação ao telefone. O telefone é um elemento essencial do jornalismo de investigação em Portugal, sobretudo o dos «abutres», sendo o outro a denúncia. Em certos casos, o telefone é substituído pela almoçarada num restaurante discreto, daqueles onde todas as mesas vizinhas estão também ocupadas por jornalistas de investigação mais as respectivas fontes, em redor de um bom arroz de marisco ou de um cozido à portuguesa regados com um Douro ou um Alentejo. Branco ou tinto? Tinto tá bem, dr., obrigadíssimo, diz o jornalista de investigação enquanto abre o bloco-notas e afia o lápis e o dente para a denúncia e o cozido que se seguem.

O processo do caso Casa Pia, com o seu elenco ordinário de personagens e figurantes, é o revelador do país. Comparado com este caso e com os seus episódios avulsos, o julgamento de O.J. Simpson foi um momento de grandeza da vida judicial americana, cheio de exemplos. Para quem não se recorda, O.J. Simpson foi aquele preto grandalhão que esfaqueou a mulher e o amante da mulher e depois se safou em tribunal, porque tinha um advogado preto grandalhão muito bom e, essencialmente e isto é que importa, porque a Polícia Judiciária de lá fez asneira. As asneiras da Judiciária pagam-se caro, nos Estados Unidos, mas só quando cobertas por milhões de dólares para pagar a grandes advogados de defesa, não necessariamente pretos. Por cá, ainda nem chegámos ao julgamento e já vimos desfilar rufiões, intriguistas, denunciantes e cabalistas que cheguem, e cada dia introduz uma nova indignidade ou um novo ilícito penal.

E que faz o excelentíssimo procurador da República, a alegada (não se pode falar sobre o caso Casa Pia sem usar esta palavra, alegada, alegadamente, etc.) âncora da nave dos loucos? Vai navegando à vista, sem lastro e sem bússola, amontoando erros, más decisões, confusões, investido da confiança política do Presidente da República e do primeiro-ministro. Tá bem, doutores, obrigadíssimos, dizemos nós. Sempre falando como cidadãos, claro. E sempre alegadamente, o mais alegadamente possível.

Nota: escrevo na segunda-feira, pode ser que até sábado o procurador seja vítima de «uma cabala». E demitido. Que é o que já devia ter sido.

33. António Barreto - Sociólogo

Público- 19.09.2004

O mistério da Casa Pia

Ao longo dos últimos dois anos, a Casa Pia foi matéria de primeira página em todos os jornais, rádios e televisões. A seguir ao campeonato europeu de futebol, foi o facto "nacional" que mais repercussão teve na imprensa de todo o mundo, mais até do que a mudança de governo, os incêndios de Verão, a nomeação de Durão Barroso para a Comissão Europeia ou a portuguesa transexual que venceu o "Big Brother" inglês. António Barreto in Público

Foi certamente o processo que mais contribuiu para revelar a crise da justiça portuguesa, as deficiências do processo judicial e a ineficiência das polícias de investigação. Ao que leva a crer (ainda se espera pela conclusão dos infindáveis processos...), foram cometidos, durante pelo menos dez e talvez mesmo vinte anos, crimes de abuso de menores, de proxenetismo, de pedofilia, de lenocínio, de chantagem, de extorsão e de exploração sexual de crianças. Haverá uma dezena de arguidos à espera de julgamento, uns em liberdade, outros não.

Começam agora a ser conhecidas as circunstâncias em que os processos de investigação e de instrução foram conduzidos. Todos recordam actos e gestos que envergonham os que desejariam viver numa sociedade decente: escutas telefónicas arbitrárias, interferências políticas de vária espécie, rivalidades entre corpos policiais, conflitos entre magistraturas, interrogatórios nocturnos que mais fazem pensar em tortura do sono do que qualquer outra modalidade reconhecida e aceite por gente civilizada, métodos de identificação de arguidos e processos de interrogatório pelo menos suspeitos e discutíveis, alargamento indiscriminado da prisão preventiva, ocultação aos arguidos dos temas de acusação, fugas deliberadas de informação orientadas por pessoal superiormente qualificado, destruição do segredo de justiça de acordo com conveniências pessoais e políticas, etc. Não tenho razões para acreditar, mas é possível que as autoridades competentes (Parlamento e Governo) se esforcem por retirar as lições desta que tem sido uma das maiores infâmias do Estado moderno em Portugal. É teoricamente possível que as autoridades aprendam com os erros cometidos e as deficiências legais e práticas, a fim de renovar e reformar este sistema.
Voltando à Casa Pia. A serem verdadeiras as acusações e a confirmarem-se os alegados factos amplamente divulgados, podemos ter por assente que foram cometidos crimes muito graves, de modo continuado, durante vinte anos, ao abrigo das regras de organização de uma instituição pública. A autoria dos crimes é discutida e polémica, mas a sua existência constitui um facto. Dezenas ou centenas de crianças confiadas (pelos pais, por outros familiares ou por instituições) ao Estado foram molestadas em proveito da luxúria e das finanças de umas tantas pessoas, uns funcionários da dita Casa Pia, outros meros colaboradores, outros ainda totalmente estranhos à entidade. A instituição e as suas regras de organização permitiram tais factos ou, pelo menos, não foram os adequados para os evitar. A Casa Pia acabou por se transformar numa organização que, voluntariamente ou não, favoreceu o proxenetismo, tendo até, quem sabe, colaborado na formação de prostitutos e prostitutas. Ao que parece, várias vezes foram os dirigentes da casa Pia alertados para tais factos. Ao que consta, muitos foram os Ministros e Secretários de Estado da respectiva tutela, assim como Directores gerais, Subdirectores gerais, Directores de serviços e Inspectores, que, num ou noutro momento, tiveram conhecimento dos factos, de certos factos, ou pelo menos de que algo de estranho se passava naquela instituição. Diz-se ainda que chegaram a ser realizados inquéritos, ou escritos relatórios, ou elaboradas informações de serviço, que não terão tido efeitos nem consequências, não se sabendo se não havia neles matéria relevante ou se tais documentos foram sonegados, destruídos, escondidos numa gaveta ou simplesmente esquecidos.
Há aqui matéria mais do que suficiente para que, num Estado decente e civilizado, alguém, com autoridade e competência, tome a iniciativa de mandar fazer um profundo e exaustivo inquérito àquela instituição, envolvendo as suas chefias e outros responsáveis durante os vinte anos de referência; implicando uma análise pormenorizada aos métodos educativos (?), aos critérios de organização e à "filosofia" que preside à Casa Pia; e não esquecendo de apurar também as responsabilidades de sucessivos Ministros, secretários de Estado, Directores e Inspectores na ocultação dos factos, na cumplicidade com os protagonistas ou em operações de encobrimento.

Na verdade, além das responsabilidades individuais dos criminosos e seus colaboradores, é indispensável determinar as responsabilidades institucionais da Casa Pia. O que parece estar cada vez mais longe de ser possível. Através de um notável processo de inversão de responsabilidades, a Casa Pia soube transformar-se em vítima e queixosa, quando tudo leva a crer que, para todos os efeitos, a instituição devesse ser acusada e arguida. Quanto mais não seja, a fim de proporcionar uma reforma radical da instituição e dos seus métodos (incluindo a sua eventual extinção e substituição por outras organizações mais adequadas) e de evitar que, de futuro, outras pessoas possam, com o que aprenderam, voltar a utilizar a instituição como fornecedora de crianças.

Ora, não só a Casa Pia é vítima e se apresenta nos tribunais na qualidade de queixosa, como pretende ser ela a defensora e protectora das crianças, quando já se percebeu que o não soube ser durante décadas. Além disso, que se saiba, nem o Governo, nem o Parlamento, nem o Presidente da República (e não vejo mais quem possa ser...), mandaram realizar inquérito independente, por personalidade acima de toda a suspeita, não envolvida com a instituição, mas também não mantendo quaisquer relações com os ministérios da tutela. Foi o secretismo e a burocracia que permitiram os crimes; que protegeram os criminosos; que impediram as inspecções; que criaram a impunidade dos responsáveis políticos; e que agora fazem com que a Casa Pia não seja sequer posta em causa, a não ser pelos seus próprios dirigentes, na medida da sua exclusiva vontade.
A ausência de recurso a inquéritos sérios e independentes (que não podem ser os inquéritos parlamentares, totalmente desprestigiados e irrelevantes), neste como noutros casos, é uma das mais graves deficiências da democracia portuguesa.

 

34. José Vitor Malheiros - Jornalista

Público- 27.05.2003

A separação de poderes visa reduzir a probabilidade de abusos e não transformar o poder judicial num poder esotérico e insancionável que, em nome da discrição exigível numa investigação, não reconhece o dever de prestar contas nem aos outros poderes nem aos cidadãos e se permite todos os desleixos.

Fé na Justiça?

A credibilidade da Justiça portuguesa sofreu nos últimos dias um rude golpe.
Não digo isto por ter a convicção de que se terá prendido um inocente (pois não sei se Paulo Pedroso está inocente) mas devido às circunstâncias e declarações que rodearam essa prisão.
A primeira dessas circunstâncias são os argumentos avançados pelo Ministério Público para o interrogatório e prisão preventiva de Paulo Pedroso, que foram apresentados ao Parlamento e que são hoje do domínio público. Seria de esperar que o MP se esmerasse nessa argumentação. Só que não só os argumentos aduzidos parecem de grande fragilidade, como o documento em causa até continha falsidades grosseiras (a referência a uma "voz masculina" que se sabe hoje pertencer a uma mulher) e evidenciava, segundo alguns juristas, indícios de erros processuais (identificação do arguido por uma foto) que podem ferir de nulidade a investigação.

Há uma intenção evidente na transcrição da escuta da "rapariga" que era afinal uma rapariga: provar a "perversão sexual" do acusado. Acontece que, mesmo que isso fosse um facto e que o interlocutor de Paulo Pedroso fosse um homem tratado por "menina", compreende-se mal a sua inclusão no documento, a não ser que o MP considere um indício de crime algo que não seja a relação heterossexual monogâmica, santificada pelo matrimónio e para fins de procriação.
Outra das circunstâncias descredibilizadoras da Justiça (e não das menores) diz respeito ao regime das escutas telefónicas, que ficámos a saber que está entregue a uma total arbitrariedade. Nos últimos dias aprendemos que, se alguns juristas consideram as escutas apenas admissíveis a suspeitos, o PGR admite-as desde que "a conversa ajude à descoberta da verdade". Uma condição que se pode aplicar a quase qualquer conversa, tão vaga que nem sei se se pode chamar critério. É ridículo que, perante critérios de uma tal liberalidade, nos queiram descansar com a ideia de que a autorização de um juiz garante o respeito dos direitos individuais.
Acresce a isto a incoerência lógica de não ser possível interrogar um deputado com imunidade parlamentar mas de ser possível escutá-lo - o que constitui um estranho incentivo à escuta de políticos.
Finalmente, temos as declarações do PGR, tão despreocupadas que suscitam as maiores preocupações. Primeiro declara a sua convicção de que Carlos Cruz é inocente e Carlos Cruz é acusado e preso; depois afirma que não tem conhecimento de qualquer escuta a Ferro Rodrigues, mas em seguida diz sibilinamente que todas as escutas feitas são legais. Finalmente, diz que Ferro não é suspeito e deixa-nos a todos aflitos, pois isso significa que o secretário-geral do PS pode ser posto sob escuta legalmente, sem ser suspeito de um crime, e ficamos a saber que isso é algo tão banal que nem sequer o PGR é avisado do facto.
A última pérola foi a sua declaração de que Herman José, chamado a prestar declarações, "pode ser" suspeito. É que se Herman é suspeito, teremos um desrespeito do segredo de justiça; se não é, podemos ter uma difamação.
Inúmeros dirigentes políticos têm repetido os apelos à serenidade e à confiança na Justiça. Mas é preciso não esquecer que as instituições devem dar-nos razões para confiar nelas. Os cidadãos não podem (e não devem) confiar na Justiça como se confia na Virgem de Fátima, por uma questão de fé ou dogma.
A separação de poderes visa reduzir a probabilidade de abusos e não transformar o poder judicial num poder esotérico e insancionável que, em nome da discrição exigível numa investigação, não reconhece o dever de prestar contas nem aos outros poderes nem aos cidadãos e se permite todos os desleixos.
A Justiça tem de explicar os seus motivos, de justificar os seus critérios e de se credibilizar com a sua acção. E essa exigência não é uma pressão, é um imperativo democrático.

35. José Manuel Fernandes - Jornalista, ex Director do Público

Público- 25.06.2004


A Justiça a Funcionar?

Um dos lugares comuns mais repetidos cada vez que se conhecia uma reviravolta no processo da Casa Pia foi o que isso demonstrava que, afinal, em Portugal a Justiça sempre funcionava. Formalmente, o lugar comum é certeiro: as reviravoltas resultavam regra geral da apreciação de recursos por tribunais superiores e o direito de recorrer é um dos alicerces da Justiça. Na substância, contudo, confrontámo-nos com situações em que pessoas estiveram presas sem que tal se justificasse, ou que foram libertadas sem que se percebesse bem porquê. O que significa que a "justiça a funcionar" foi produzindo injustiças.
Esta semana foi conhecido o recurso do Ministério Público relativo ao não pronunciamento de Paulo Pedroso e a decisão do Tribunal da Relação sobre o Caso Moderna. E mais uma vez se fica perplexo. O primeiro é de uma enorme violência para com a juíza do Tribunal de Instrução responsável pela decisão e permite perceber como os seus critérios foram completamente distintos dos adoptados por outro juiz que serviu no mesmo tribunal, o mediático Rui Teixeira. Já a decisão da Relação no Caso Moderna quase que destrói a sentença do tribunal de primeira instância, nuns casos inocentando quem fora considerado culpado, noutros reduzindo fortemente as penas. Para os que pensavam que o primeiro tribunal tinha querido fazer do caso - em que a montanha parira pouco mais do que um rato... - um exemplo de punição de poderosos, eventualmente exagerando nas penas, esta sentença foi uma vitória. Já para o Ministério Público foi uma derrota que suscitou a Maria José Morgado, procuradora na Relação de Lisboa, uma declaração surpreendente: "o crime de administração danosa é muito difícil de provar" pelo que... "há opiniões para tudo".

"Opiniões para tudo" na administração da Justiça? Já tínhamos ouvido formas mais elegantes, no mínimo, de evocar a falibilidade dos juízes. E formas menos cruas de dizer aquilo que muitos começam a pensar: que a nossa Justiça é, muitas vezes, uma lotaria. Que depende do juiz que se apanha. Da habilidade do advogado. Ou da inépcia do acusador público. Para não falar das falhas na investigação criminal.
De facto, havendo "opiniões para tudo", compreendem-se melhor as reviravoltas do processo da Casa Pia ou a forma como a Relação destruiu a sentença da Moderna. Mas também se compreende, por exemplo, como é que noutro caso famoso, o que envolveu o antigo governador de Macau Carlos Melancia, este foi absolvido da acusação de corrupção passiva e, no mesmo tribunal mas algumas portas ao lado, os que estavam acusados de serem os seus corruptores foram condenados.

É natural que os juízes cometam erros, é natural que os recursos revertam decisões anteriores, é natural que tudo isto seja o "normal funcionamento da Justiça" já que os homens, todos os homens, são falíveis. Mas não é natural a sucessão de tantas contradições, pelo que é necessário dizer alto o que muitos dizem baixo: há demasiada incompetência e uma quase total falta de controlo de qualidade no sistema judicial, onde os juízes funcionam mais como uma corporação que protege os incompetentes do que como uma profissão onde o mérito seja critério de evolução na carreira. Ora isso é que já não é "normal funcionamento da Justiça"

37. Directores de Imprensa Escrita - CM, JN, DN, Publico, Expresso, Visão

DN - 15.01.2004
Por: Leonor Figueiredo

Casa PiaCobertura de um processo em debate
Directores retiram ilações dos excessos

Se o processo da Casa Pia começasse hoje, provavelmente não ocorreriam tantos excessos por parte da Comunicação Social. É o que se depreende do debate que a SIC Notícia promoveu na terça-feira à noite, e que juntou seis directores da imprensa escrita.

Ao repto lançado por Adelino Faria - «alguns de vós se arrepende de ter publicado matérias sobre a Casa Pia?» - o director do Correio da Manhã confessou terem saído notícias que «se tivessem sido bem ponderadas, não publicaríamos». Mário Bettencourt Resendes (DN) também reconheceu «certas situações, em que deveriam ter sido tomadas precauções».

Alguns dos excessos revelaram relações perigosas com as fontes de informação. José Manuel Fernandes (Público) explicou que quando o jornalista tem acesso a um documento, não sabe se esse é o mais importante, ou se é o que a fonte quer divulgar.

Por isso, defendeu «regras rigorosas», como a não publicação de notícias provenientes de fontes anónimas, e o conhecimento por parte da hierarquia das fontes do jornalista. «Quanto mais pessoas do jornal souberem de onde vêm as notícias, melhor», frisou.

Por outro lado, muitos órgãos optaram por não publicar informações, algumas até provenientes da investigação jornalística sobre a pedofilia. «Perdemos muitas notícias», apontou Cáceres Monteiro (Visão), enquanto José Leite Pereira revelou que «muitas informações recolhidas pelo JN também não foram publicadas».

Para os directores presentes as relações com a justiça deviam melhorar já que, acentuou Henrique Monteiro (Expresso), «existe um conflito entre o direito e os jornalistas», patente quando os media «decidem violar a lei e sofrer depois as consequências».

Quase todos os intervenientes estiveram de acordo com a criação de uma Ordem. «Para os jornalistas, a Ordem seria uma muleta, para nos prevenir das tempestades mediáticas.» considerou Mário Bettencourt Resendes, mas Leite Pereira chegou a duvidar da sua eficácia. «Não sei se a Ordem teria resistido a tudo isto.»

Ao longo deste ano de processo Casa Pia, que dominou completamente o debate na SIC Notícias, os media tiraram algumas lições. A prova disso, mencionada por alguns directores, é o facto do processo sobre pedofilia que decorre nos Açores ter «maior investigação jornalística do que se viu cá», referiu Cáceres Monteiro, levando José Leite Pereira a acrescentar que se verifica também no arquipélago «uma maior protecção do processo» por parte dos agentes judiciários. A que se vem juntar o apelo do Presidente da República que, disse João Marcelino, «foi levado em conta».

Segredo de justiça

O debate revelou uma unanimidade dos directores relativamente ao segredo de justiça. Embora tenham reconhecido que o segredo merece ser respeitado, também concluíram que a sua violação pode ser justificável. Henrique Monteiro (Expresso) defendeu que «devia diminuir-se os casos que exigem segredo de justiça e centrar a obrigatoriedade a alguns processos, para ser respeitado». Já o director do Público observou que, quem publica elementos de um processo em segredo de justiça «está a ser conivente com quem viola a lei». Mas admitiu a existência de casos «em que se justifica (a violação)».

Uma opinião concordante com a de João Marcelino, entre outros. Cáceres Monteiro lembrou, a propósito, o desrespeito constatado no dia seguinte à assinatura do pacto, entre os media e a Alta Autoridade para a Comunicação Social, precisamente a propósito da justiça.

Frases

«É preciso tranquilizar o PR e os deputados. Os jornais são dirigidos por pessoas responsáveis que, por vezes, vão para casa a pensar se decidiram bem.»
João Marcelino
DIRECTOR 'CORREIO DA MANHÃ'

«Os jornalistas quando erram não sofrem nenhuma sanção. Devia haver mecanismos mais eficazes, até para reforçar a nossa credibilidade.»
Mário Bettencourt Resendes
DIRECTOR 'DIÁRIO DE NOTÍCIAS'

«Houve muitas outras oportunidades para o PR chamar a atenção e não o fez. Neste processo houve dezenas e dezenas de violações do segredo de justiça.»
José Leite Pereira
DIRECTOR 'JORNAL DE NOTÍCIAS'

«A imprensa alterou-se no último ano para tablóide e sinto que foi o País a ser puxado para baixo.»
José Manuel Fernandes
DIRECTOR 'PÚBLICO'

«A TVI está à cabeça deste processo com coisas absolutamente lamentáveis. Não é para informar, é para criar emoção.»
Henrique Monteiro
SUBDIRECTOR 'EXPRESSO'

«O que me preocupou mais neste processo (Casa Pia) foi o atirar de nomes para as manchetes e a publicação da verdadeira identidade das crianças. Isso não podia ter sido feito.»
Cáceres Monteiro
DIRECTOR 'VISÃO'

38. Joaquim Fidalgo -Jornalista e Professor Universitário (Diana Andringa, Estrela Serrano e M. Sousa Tavares)

Joaquim Fidalgo

Licenciado em Filologia Germânica (Universidade do Porto)

Jornalista e Professor da Universidade do Minho

"Preocupa-me que alguns jornalistas tenham interiorizado e assimilado critérios comerciais como sendo critérios jornalísticos", disse o docente de Jornalismo e director da revista "JJ", Fernando Correia, lamentando que haja no grupo profissional quem pense que "o que vende bem é uma boa notícia" (cit. por Teixeira, 2004). Também Diana Andringa, ex-presidente do SJ, se pronunciou contra o "jornalismo de sarjeta" feito a propósito do processo Casa Pia (ibidem), tendo salientado, noutra oportunidade, que "muitos dos jornalistas se demitiram da sua função de "mediadores"' na cobertura do caso".  O mais importante é chegar primeiro ao local. Ao contrário da análise, o relato emocional pode ser feito por qualquer um", afirmou, criticando a existência de "jornalistas a dias" com vínculos laborais extremamente frágeis (Diana Andringa, cit. por Margato, 2003).

Por seu lado, a então provedora do leitor do Diário de Notícias, Estrela Serrano, escrevia que a cobertura mediática do processo Casa Pia "levou o jornalismo a um grau de instrumentalização sem precedentes" (Serrano, 2004).

E, falando especificamente dos constrangimentos sentidos pelos jovens jornalistas,  Miguel Sousa Tavares desabafa: "São obrigados a prestarem-se a funções indignas, como as de vigiarem as casas dos "colunáveis", espiarem-lhes os casamentos, os enterros, asua vida privada; perseguirem as mulheres e os filhos dos suspeitos presos pelajustiça e arrancar-lhes uma lágrima, um estremecimento de terror, um reflexo deanimais acossados;  erigirem-se em juízes e decretarem condenações públicas semaudição dos acusados;  recorrerem a fontes anónimas, de cara tapada e vozdistorcida, aliciadas de todas as formas e feitios,  incluindo ofertas de dinheiro ( ... ).

Já não é de jornalismo que se trata, mas de simples compra e venda de titulos e desupostas notícias" (Tavares, 2003)


http://old.comunicacao.uminho.pt/doc/fidalgo.htm

42. Daniel Oliveira - Jornalista - Expresso e Eixo do Mal (SIC Notícias)

A justiça que tarda falta

O processo "Casa Pia" arrasta-se há oito anos. Que justiça pode ser feita quando inocentes podem ter visto toda a sua vida destruída? Que justiça pode ser feita quando as vítimas foram sujeitas a tamanha tortura?

05.07.2010

Por: Daniel Oliveira

O "escândalo da Casa Pia" chegou (não pela primeira vez) às páginas dos jornais há quase oito anos. Pela sensibilidade do crime e o mediatismo de alguns nomes envolvidos, o sistema de justiça, o regime político e a qualidade do jornalismo português foram postos à prova. Nenhum deles passou este teste de maturidade. Pode-se dizer, sem risco de exagero, que este processo abalou os vários alicerces da nossa democracia.

A 23 de Setembro de 2002 a mãe de um aluno da Casa Pia de Lisboa apresentou uma queixa na Polícia Judiciária contra um funcionário da instituição por abusos sexuais contra o filho. A 23 de Novembro de 2002 o "Expresso" noticiava que centenas de crianças poderiam ter sido violadas por esse mesmo funcionário. Depois da detenção de Carlos Silvino, Carlos Cruz, Hugo Marçal e Ferreira Diniz foram detidos a 1 de Fevereiro de 2003.

A partir destes acontecimentos, nos quais foram mais tarde envolvidos vários políticos, assistimos a um dos mais ignóbeis julgamentos populares que conhecemos até hoje. Não se deve inferir desta indignação qualquer convicção em relação à inocência ou a culpa de seja quem for. Porque é suposto, quando as coisas chegam à justiça, que a nossa convicção passe a ser irrelevante. Quer apenas dizer-se isto: os que foram considerados culpados pelo povo - incluindo quem nem sequer acusado foi - carregarão para sempre o peso da suspeita pública, mesmo que infundada, por um dos crimes que maior censura social merece. Isto, independentemente de qualquer prova.

Desde o começo deste processo passaram quase oito anos e nenhum dos que mais tarde se sentaram no banco dos réus viu ainda a sua culpa provada ou a sua inocência confirmada. E isto é um crime que já não precisa de prova ou de julgamento: com esta demora, o nosso sistema de justiça já falhou clamorosamente.

Que isto acontece, em geral, na nossa justiça, sabemos há muito. Uma justiça que tarda sempre não é justiça nenhuma. Mas quando se trata de um caso mediático, em que o julgamento popular se faz com base em rumores, tudo se torna ainda mais grave.

 A presunção de inocência não é apenas uma expressão bonita. É para levar a sério. Por isso façamos o exercício obrigatório nestes casos: e se cada uma daquelas pessoas estiver mesmo inocente? Podemos imaginar o que é carregar durante oito anos esta suspeita aos ombros sem que realmente se tenha cometido as atrocidades de que se é acusado? Conseguimos imaginar maior tortura? Que vida se pode reconstruir depois de viver quase uma década com esta humilhação? Com os olhares na rua? Com a vergonha ou a dúvida de amigos, familiares e colegas? Imaginamos o que é ser filho de um destes réus e crescer durante oito anos neste Inferno? E se não se tiver dinheiro para pagar a defesa por tantos anos? É possível defender que alguma justiça é possível nestas circunstâncias? Como podemos nós, como comunidade, olhar para o espelho e dizer que vivemos um Estado de Direito quando permitimos tamanha pena sem qualquer sentença?

Desde o começo deste processo passaram oito anos e nenhuma das vítimas viu qualquer sinal de justiça. Imaginam o pesadelo de recordar vezes sem conta a pior de todas as experiências? Quem quererá, depois de ver tamanha incompetência, recorrer aos tribunais para punir um violador ou um abusador? Quem quererá ver o seu sofrimento mais íntimo usado em guerras de corporações, jogos de bastidores, manobras políticas ou sensacionalismo mediático?

Passaram oito anos e a sentença foi mais uma vez adiada. Com centenas de recursos, o processo pode arrastar-se ainda mais. O risco de prescrições paira como um fantasma. O que pode querer dizer que os réus eventualmente inocentes nunca chegariam a ver o seu nome limpo. Viveriam para sempre com esta ignóbil suspeita. Sem carreira profissional possível, sem paz nas suas vidas, sem direito a andar na rua de cabeça erguida. E que as vítimas nunca veriam aqueles que delas abusaram cumprir uma pena pelo crime que cometeram.

A mensagem para a sociedade é duplamente perigosa: que o crime compensa e que a única justiça que conta é que se faz fora dos tribunais, que por não dar direito a qualquer defesa, não é justiça nenhuma.

As garantias para quem é acusado de um crime não são um pormenor. Sem elas a justiça não passa de um linchamento. A justiça sumária, tão do agrado de quem nunca se imagina acusado de um crime que não cometeu, é apenas outra forma de crime. Mas quando a justiça se enreda num novelo processual tão complexo que, quem o saiba usar, pode impedir qualquer julgamento, não damos garantias a ninguém. Nem aos inocentes, que nunca chegam a ver o seu nome limpo, nem aos réus que, não tendo recursos para tal, estão impedidos de usar todos os alçapões do sistema, nem às vítimas.

O péssimo funcionamento da nossa justiça é o maior problema da nossa democracia. A nossa justiça é lenta, incompetente e socialmente desigual. Ela é um factor de injustiça e de alarme social. Ela não é justa. O caso "Casa Pia" apenas o tornou tudo isto ainda mais evidente.

 

No dia 28 de Março, Daniel Oliveira publicou este artigo no Expresso Online

Expresso On Line -9:00 Segunda feira, 06.09.2010

A frieza da dúvida   

Por: Daniel Oliveira (www.arrastao.org)

Por princípio duvido. Sempre. Não é cinismo, é apenas uma forma de me obrigar a pensar. A dúvida não pode paralisar. Tem de corresponder a um método que nos leve a algum lado. Mas precisamos sempre dela. E quando se trata de tirar a liberdade a alguém a colar-lhe para sempre a rótulo de pedófilo a dúvida é a única atitude aceitável.

Tudo no processo Casa Pia nos manda estar do lado certo. Trata-se de um crime que fere de forma profunda a sensibilidade de todos. Nem é preciso ser especialmente sensível ou sequer bem formado para sentir a revolta. E ainda por cima com crianças institucionalizadas. As mais desprotegidas. E sabendo-se que foram de facto repetidamente abusadas.

A trama não deixa espaço para meias-tintas. De um lado adultos, do outro crianças e adolescentes. De um lado ricos, do outro pobres. De um lado poderosos, do outro os mais desprotegidos dos desprotegidos. E isto num pais onde a impunidade se compra. Como duvidar?

Pelo contrário, é quando a emoção exige certezas que temos de nos impor a dúvida no nosso espírito.

Todas as investigações de abuso sexual são difíceis. Sobretudo quando acontecem, como a maior parte das vezes acontecem, em contexto familiar. É a palavra da criança, confusa, vulnerável, traumatizada e assustada, contra a do abusador, adulto, maduro, dominador e racional. E quando tudo aconteceu longe dos olhos de todos.

Não é bem o caso deste processo. São várias vítimas e vários abusadores. Gente que se tinha de contactar e de se deslocar. Neste tipo de crime, trata-se, apesar de tudo, de uma investigação mais fácil porque os abusadores estiveram mais expostos. Sobretudo os que são figuras publicas facilmente reconhecidas.

Infelizmente, sabemos quais foram as penas mas não temos ainda acesso à sentença (o que é absurdo, num caso com este grau de mediatização, depois de seis anos de julgamento e quando as últimas alegações foram ouvidas em Fevereiro de 2009) nem conhecemos a fundamentação para cada uma delas (coisa inaceitável num caso com este melindre público). Tudo só pode ser dito e escrito com uma reserva que não era suposto existir depois da condenação.

Sabemos que as provas contra os condenados, com a excepção de Carlos Silvino, se baseiam nos testemunhos das vítimas. Não há, pelo que percebi, provas circunstanciais.

Sempre com a reserva que a informação incompleta obriga, sabe-se que , com excepção de Manuel Abrantes e Carlos Silvino (um era motorista do outro) e de um telefonema do consultório de Ferreira Diniz para Rito, que terá tido outra origem, não há um registo de telefonema para Carlos Silvino, outro abusador ou vítimas de nenhum dos acusados. Isto apesar de milhões de registos de um período de dez anos investigados. Nada. Em dez anos, com tantos encontros e tanta gente nesta rede, nunca ninguém falou com ninguém. E sabemos que estes registos só foram incluidos no processo a pedido dos arguídos. O Ministério Público considerva uma não prova.

Apesar de serem seis abusadores e sete abusados (os outros 25 referem-se apenas a Silvino), nunca ninguém, a não ser os assistentes neste processo, viu os condenados próximo de nenhum dos doze lugares que tantas vezes terão visitado. A não ser a empregada de Ferreira Diniz que disse que terá visto Carlos Cruz sentado na sala de espera da sua clínica, coisa que não ficou muito clara em julgamento e que desconheço se estará sequer na fundamentação da sentença. Isto apesar de Carlos Cruz ser, à época, uma das figuras mais conhecidas deste País e de dificilmente escapar à atenção de qualquer pessoa. E não foi por não se procurar: foram ouvidas 900  testemunhas, cem só em Elvas. E nunca ninguém viu nada em nenhum dos doze locais.

Três dos doze locais chegaram a ser identificados com morada certa e deixaram de o ser quando se mostrou impossível que ali tivessem acontecido os crimes. Passaram então a ser identificados como um prédio nos números impares da Alameda Afonso Henriques, outro na Avenida da República perto da Feira Popular e uma moradia algures no Restelo, para lá de um outro que já era identificado como um lugar não determinado da Buraca. Como puderam, nestes casos, os arguidos defender-se quando nem é possível encontrar testemunhas?

A descrição da casa de Elvas feita pelas vítimas estava toda errada, sendo certo que não houve obras na casa até à prisão do acusado. Mais: uma das vítimas fora lá ainda antes, na companhia de uma jornalista da TVI. A jornalista depôs em tribunal e explicou que o queixoso estava à nora. E à casa de Elvas, descrita como centro de orgias, afinal só foi, segundo a sentença, Carlos Cruz.

Como se pôde ouvir na leitura da sentença, grande parte das datas é de uma enorme imprecisão. Há mesmo dois casos envolvendo Carlos Cruz em que se situa um crime algures num trimestre. Como é possível provar a inocência num espaço tão dilatado de tempo?

Sem provas circunstanciais, pequenas que sejam, restou a palavra das vítimas. Imprecisa, difusa e, neste processo, muitas vezes contraditória. Coisa natural, dado a distância temporal e o trauma, dirão e eu concordo. Mas como se podem defender os acusados quando a única coisa que sobra é essa imprecisão? Sem contar que algumas das vítimas acusaram pessoas de crimes que se vieram a provar sem fundamento.

Não conheço Carlos Cruz ou qualquer outro dos condenados. Não tenho por eles nem simpatia nem antipatia. Não tenho qualquer convicção em relação à sua culpa ou inocência. Sei que duvidar da palavra de vítimas de abuso sexual pode ser de uma enorme crueldade. Mas sei que noutros países já aconteceram processos destes que se vieram a provar infundados. Que sem nada que sustente a culpa a não ser a palavra das vítimas estaremos num terreno pantanoso.

Se acho que as vítimas mentiram? Nem sim, nem não. Não tenho como saber de uma forma rigorosa e racional. A emoção diz-me que não, mas a razão não me diz nada. Se acho que, não mentido, têm obrigação de se recordar com precisão de datas e de casas? Claro que não. Só têm obrigação de dizer a verdade com o rigor que lhes é possível.

Repito: não tenho qualquer convicção nesta matéria. Mas tenho muitas dúvidas, baseadas em factos e não em emoções (essas levar-me-iam para a condenação certa), sobre esta investigação e este julgamento, nos quais abundaram episódios caricatos. Por isso, não me junto ao coro de festejos populares. Porque ele resulta quase exclusivamente de julgamentos emocionais pouco informados (os poderosos tinham de ser culpados) e porque estas dúvidas não me deixam descansado. E se algum destes condenados for inocente? E se não tiveram, perante tanta imprecisão, forma de se defender? E se as vítimas não estivessem a dizer a verdade quando mais nada existe a não ser a sua palavra? Imaginam a monstruosidade?

Seria excelente estar do lado da certeza reconfortante: o poder mediático e económico não conseguiu calar a justiça e por uma vez as vítimas viram as suas vidas destruídas vingadas. Mas se não for assim? Se algum dos condenados não for abusador? A frieza sinistra da dúvida é lixada. Mas é a única coisa que nos salva da injustiça das verdades feitas. E os factos que conheço sobre esta investigação não me dão as certezas de que precisava.

Tanto faz

Por: Daniel Oliveira

O Mundo pode desabar que a maioria dos nossos juízes continuará imperturbável. Três juízes tiveram nas mãos, durante seis anos, o mais mediático dos casos que a justiça portuguesa já julgou. O assunto é sensível e acende paixões. As repercussões politicas, legislativas e mediáticas foram as que se conhecem. O julgamento demorou o tempo infinito que se sabe. Mas nada perturba a modorra em que vive justiça portuguesa.

Desde Fevereiro de 2009 que tudo o que tinha de ser dito em audiência foi dito. Depois foi esperar. A leitura seria a 5 de Agosto, depois de um adiamento em Julho. Mas foi de novo adiada para 3 de Setembro, que era preciso ainda mais tempo "para escrever o acórdão, que imediatamente a seguir à sua leitura tem de estar pronto e corrigido para ser depositado na secretaria do tribunal e consultado pelas partes".

Para espanto de todos, os arguidos, os advogados e o País conheceram as condenações e as penas mas ficaram no escuro quanto à sua fundamentação. Porque o Mundo não pára quando um juiz assim o decreta, o debate sobre a sentença aqueceu. Mas um acórdão que já tinha de estar escrito antes da sua leitura não podia ser entregue. Era preciso rever o que tinha sido apresentado apenas a 3 de Setembro porque tinha de ser revisto e, para além do mais, a coisa ainda não estava assinada.

Como se tratava de uma sexta-feira, seria entregue na próxima segunda-feira? Claro que não. Na quarta, que não há razões para pressas. Porquê? Ninguém sabe ao certo quanto dias são necessários para rever o que já tinha de estar revisto. Esperamos então até quarta. É que em nenhuma sentença os seus fundamentos são um pormenor. São, na realidade, o que mais conta para o escrutínio público a que os tribunais devem estar sujeitos. Ainda mais num caso como estes.

Chega a quarta-feira e nada. Explica o Conselho Superior da Magistratura: os nomes das vítimas têm de ser apagados, coisa de que, supomos, ninguém se terá lembrado nem na segunda, nem na terça. Até que se fica a saber que o advogados foram ao tribunal e voltaram de mãos a abanar. Também não o receberam ontem. E como esses recebem o acórdão original, a desculpa é outra: um "problema informático", esse álibi moderno para todas as incompetências.

Fosse mal intencionado e diria que afinal a dúvida do advogado Ricardo Sá Fernandes tinha pertinência: os fundamentos não estariam ainda escritos? Se assim fosse, seria de uma enorme gravidade. Porque as penas resultam de fundamentos e não o oposto. Porque não se podem fazer acertos conforme as reacções a uma sentença. Porque o caso é grave e quando se decide da liberdade dos outros não se improvisa.

Como todo eu sou boa vontade parece-me que a coisa é mais simples. A verdade é que nada perturba a nossa justiça. Ela é bem cega, mas é paralítica. Como não existe Mundo para além da secretária de um juíz, não se incomoda em exibir o seu laxismo. Nem mesmo quando, tratando-se de um caso que toda a gente está a acompanhar, é a sua imagem que se degrada aos olhos de todos. Tanto faz.

A entrega aos condenados dos fundamentos para uma sentença que lhes tira a liberdade com uma semana de atraso não é apenas um pormenor técnico. Não é apenas "papelada". A credibilidade da justiça depende do rigor absoluto dos seus procedimentos. Se nem mesmo quando todos estamos a olhar a coisa mais simples é feita com o mínimo de profissionalismo temos todas as razões para ficarmos assustados. É deste improviso que depende a nossa liberdade e a nossa segurança? Que medo.

43. Rui Rangel - Juíz Desembargador

A Justiça e o Ministério Público

A justiça tem estado, pelas piores razões, no centro das discussões públicas. O que se discute não é a justiça enquanto virtude moral, enquanto sistema pacificador e ordenador do conflito social. Discute-se a caricatura de justiça que vamos tendo. Hoje é motivo de anedotas, muito por culpa dos casos mediáticos mal resolvidos.

Por: Rui Rangel, Juiz Desembargador

Nota: o sublinhado é de minha autoria

A investigação criminal feita pelo MP e pelas polícias, nos casos que envolve gente poderosa, tem arrastado a justiça para a maior crise de credibilidade e de prestígio de que há memória. É preciso separar as águas. Quando se fala de justiça, o que está em causa é o tribunal e o juiz. O MP é um auxiliar da justiça, como são as polícias e os advogados. Por isso o MP nem sequer devia estar fisicamente no tribunal, partilhando gabinetes ao lado do juiz. Devia vir a tribunal como vem o advogado. E é esta confusão que paira na cabeça das pessoas, misturando tudo, que faz com que ninguém já acredite na justiça e na busca da verdade.

O grande problema está no modelo de investigação criminal que existe e num MP que não foi capaz de se organizar e de assumir em pleno as suas competências. E está também, muitas vezes, na falta de vontade e de firmeza de quem dirige as investigações. Não sei se há pressões políticas ou hierárquicas. O que sei é que as coisas falham sempre, demora-se muito tempo a investigar e a montanha pare sempre o mesmo rato. Se o rato não desconfia, desconfiam os portugueses. Diz o Povo que há promiscuidade política na actividade investigatória do MP e na sua cadeia hierárquica, que gosta de ter poder só para manter gente poderosa em sentido, mas sem resultados. Tenho para mim que o MP vive a maior crise de credibilidade de sempre. E não é por causa da sua falta de autonomia, mas por razões da sua organização interna, das suas capelinhas e das partilhas de poder no seu funcionamento.

É sempre bom manter a investigação por muitos anos, em lume brando, porque o homem vive de aparências e dá a impressão de que se está a trabalhar e a investigar a sério. Pura ilusão! Uns querem mais resultados e mais eficácia, mas não podem porque não têm poder, outros têm poder mas não querem incomodar os poderosos. É o próprio MP que pode estar a matar a sua autonomia e a dar motivos para que o poder político cavalgue sobre o seu estatuto orgânico, politizando a sua função. Sempre fui adepto de um outro modelo de investigação assente na figura do juiz de instrução criminal. Mas não foi este o caminho escolhido pelo legislador. Os resultados estão à vista.

Com a autonomia que existe, das mais perfeitas na Europa, o MP tinha a obrigação de produzir outros resultados. E não adianta pedir mais autonomia e outra disciplina na cadeia hierárquica, tendo sob tutela casos mediáticos com uma investigação que envergonha Portugal. Mais autonomia e mais poder hierárquico só fazem sentido para servir melhor a justiça e os cidadãos. Por causa das trapalhadas do MP, não é justo que a justiça, incluindo os juízes, pague a factura, só porque tudo se chama justiça.

 

44. Richard Webster - Escritor Inglês e investigador de casos de abusos na Grã Bretanha

O Kincora Português?

O escândalo sexual mais sério na história da Europa contemporânea talvez seja a crise enfrentada hoje pelo líder do Partido Socialista Português, Eduardo Ferro Rodrigues, e o seu afilhado político Paulo Pedroso, 38 anos, ex-Ministro do Trabalho.

Pedroso é um político jovem que goza de alta consideração e destaque e é frequentemente mencionado como o herdeiro natural da liderança do Partido Socialista e um futuro Primeiro-Ministro.  No entanto, foi preso em 23 de Maio de 2003 e permaneceu encarcerado durante mais de 4 meses, devido a 15 acusações de abuso sexual de adolescentes, ex-internos da rede pública de orfanatos Casa Pia.  Em Outubro de 2003, um Tribunal de Recursos de Lisboa libertou Pedroso, cujos colegas o reencaminharam nas suas funções parlamentares.  A sombra das acusações, porém, ainda paira sobre seu futuro político.

O nome do próprio Ferro Rodrigues chegou a ser citado nos documentos que levaram à prisão de Pedroso, o queo levou a afirmar que esperava acusações contra si próprio.  Um jornal português chegou a publicar que Ferro Rodrigues teria estado presente e testemunhado um caso de abuso de garotos, porém que não teria participado do acto em si.

Este escândalo não é recente.  Durante meses, desde a prisão, em Novembro de 2002, de um antigo servidor da Casa Pia, Carlos Silvino, acusado de estuprar  menores e de encaminhá-los a outros pedófilos, Portugal vem sendo abalado por boatos de que os orfanatos da Casa Pia estiveram infiltrados por uma rede de pedofilia.  Essa rede forneceria garotos para abuso sexual a políticos e celebridades.  Carlos Cruz, um dos mais famosos apresentadores de TV em Portugal, já foi preso, assim como Jorge Ritto, antigo embaixador na África do Sul.  Também presos e aguardando julgamento estão o um ex-médico da instituição (João Ferreira Diniz), e o antigo director financeiro dos orfanatos (Manuel Abrantes).  Todos são acusados de abuso sexual de menores.

A pergunta que hoje domina os boatos políticos em Portugal é:  são culpados ou tornaram-se vítimas de uma caça às bruxas?

O líder socialista Ferro Rodrigues defende a segunda opção, pelo menos no que diz respeito a Pedroso.  Numa declaração distribuída à imprensa na época da prisão de Pedroso,  prometeu opôr-se ao que descrevia como uma campanha de falsas acusações.  "Quero deixar claro:  a nossa luta será serena mas determinada e dirige-se - e sempre se dirigirá - contra os responsáveis por essa difamação, qualquer que seja o seu objectivo", afirmou Rodrigues.  O próprio Pedroso protestou ser vítima de uma calúnia. "Nunca participei de qualquer acto de pedofilia nem de nada semelhante", declarou numa entrevista colectiva nas vésperas da sua prisão.  Agora que voltou ao parlamento, continua a manter a sua declaração de total inocência quanto a todas as acusações.  Os que o conhecem bem não têm nenhuma dúvida: trata-se de um homem inocente que sofre acusações injustas.

Pedroso é apoiado não só por Rodrigues, mas também por seu predecessor, o antigo líder socialista e ex-Primeiro Ministro António Guterres.  Amigo de Tony Blair, Guterres prometeu testemunhar a favor de Pedroso, se necessário.

Enquanto o escândalo abala Portugal, pode ser oportuno a rever sua possível origem histórica, uma vez que os relatos portugueses recentes têm um som familiar:  a ideia da existência de uma rede de pedofilia ligada a um orfanato para fornecer garotos a políticos do alto escalão originou-se na Grã-Bretanha.  Era apenas uma ideia, que apareceu pela primeira vez em 1980 com relação ao albergue de menores trabalhadores de Kincora, em Belfast.  A ideia ressurgiu em 1991, como um significativo desdobramento do escândalo do País de Gales, eventualmente levado aos tribunais.  Na revista Scallywag, hoje não mais publicada, o jornalista Simon Regan escreveu uma reportagem que acusava políticos de alto escalão pelo abuso sexual de garotos do orfanato de Bryn Estyn.

Em ambos os casos, havia um fundo de verdade que acabou surgindo tanto em Kincora quanto em Bryn Estyn:  um ou dois funcionários das instituições haviam realmente praticado abusos sexuais.  Mas a ideia de uma rede de pedofilia que forneceria rapazinhos a políticos sempre foi uma fantasia, tanto no caso de Kincora como no do País de Gales.  

O jornalista que escreveu o livro mais completo sobre Kincora, Chris Moore, ex- repórter da BBC, confirmou.  Embora Moore acreditasse piamente e aceitasse sem reservas quase todas as alegações de abuso sexual, repudiou com firmeza os elementos mais sensacionalistas da história de Kincora na abertura de seu livro:

Desde 1980 o nome Kincora encontra-se associado na memória do público com o abuso homossexual de rapazes ali abrigados.  Devido, porém, à publicação de algumas versões fantasiosas dos acontecimentos, surgiram várias concepções erróneas  Por exemplo, a palavra "prostituição" foi usada relativamente aos abusos na instituição de Belfast, mas fica claro, a partir dos depoimentos de antigos residentes, que essa acusação não tem fundamento.  Em seus depoimentos às autoridades, as vítimas acusaram apenas quatro funcionários de Kincora, que foram depois condenados no tribunal.  Alguns acusaram funcionários de outras instituições públicas, que também foram condenados.  Ninguém alegou ter sido entregue a outros homens para actividades sexuais, ou que homens vinham a Kincora para manter relações sexuais com rapazes ali internados (Chris Moore, The Kincora Scandal: Political Cover-Up and Intrigue in Northern Ireland, Marino Books, Dublin, 1996, p. 7)

Enquanto a polícia portuguesa investiga a suposta rede de pedofilia no país (que, como as redes imaginárias alvo das histórias de Kincora e do País de Gales, teria sido mantida em segredo durante anos pela polícia e pelos políticos que sabiam de sua existência), a história sugere que cautela seja a palavra de ordem.

É evidente que se poderá dar o caso de haver plausibilidade em algumas das acusações. Mas o facto de Pedroso ter sido identificado pelo seu primeiro acusador apenas depois de lhe terem sido mostrados alguns retratos de políticos, quando posto ao lado de outras provas descobertas pelo jornalista de investigação português, Jorge Van Krieken, sugere convincentemente ele ser, tal como o afirma, a vítima inocente de uma série de falsas acusações.

Onde quer que esteja a verdade, recordemos as lições de Kincora e do País de Gales:  embora as acusações possam, teoricamente, ser provadas, não podem estar apoiadas apenas em acusações - independentemente da sua quantidade.  A segunda lição é:  redes de pedofilia baseadas em orfanatos e servindo os gostos sexuais pervertidos de políticos importantes tendem a existir mais na imaginação do que na realidade.

A mais segura conclusão a que se pode chegar hoje em relação ao antigo Ministro do Trabalho Paulo Pedroso e a outras celebridades portuguesas que também foram presas é que são completamente inocentes.

A dificuldade, porém, é que hoje a imprensa enfoca o caso com uma publicidade sensacionalista mais baseada em boatos do que em pesquisas, o que dificulta sobremaneira que a maioria das pessoas e até os organismos judiciais, cheguem a essas conclusões e ajam de acordo com elas.

© Richard Webster, 2003 / 2004

45. Dr. José Pinto Ribeiro -Jurista, Ex professor catedrático e Ex Ministro da Cultura

Público -22.11.2005

"O chamado "Processo Casa Pia" foi agora e mais uma vez abalado na sua já pouca ou nenhuma credibilidade pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que ilibou, definitivamente, os três arguidos fabricados pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público na fase de inquérito, fase exclusiva e secretamente por estes conduzida [...]

Não interferindo esta decisão da Relação no julgamento em curso, ela não deixa de confirmar aquilo que de pior e inadmissível tem o processo penal em Portugal: inacreditáveis e desacreditados métodos e processos pelos quais, unilateralmente e sob segredo, as Polícias e o Ministério Público constroem autisticamente os seus arguidos e as suas acusações, quantas vezes ao abrigo de entendimentos perversos que a lei consente ou mesmo induz. Meios, métodos e processos estes que só muito a custo e com restringidíssimos direitos podem ser questionados pela defesa [e] que podem conduzir a prova acusatória que passa directamente para os juízes que julgam [...] neles se baseando muitas vezes a criação de arguidos, as prisões preventivas, as acusações e até as condenações.

46. Editorial Expresso On Line

Expresso On Line

Editorial -0:00 Quarta feira, 8 de Setembro de 2010

A Justiça não se redimiu

(www.expresso.pt)

Ao fim de oito anos, o verdadeiro perdedor do processo Casa Pia é a Justiça, porque uma sentença que demora tanto tempo a proferir já não é justa para ninguém.

Houve crianças, que estavam ao cuidado de uma instituição do Estado, abusadas sexualmente ao longo de anos. Houve abusadores e coniventes. Houve 461 audiências em três tribunais e foram ouvidas 981 pessoas. Ontem, ao fim de um processo iniciado há oito anos e de quase seis anos de julgamento e perante um enorme carnaval mediático, foram conhecidos os factos que o tribunal deu como provados e as penas que aplicou a seis dos réus, ilibando a única arguida.

O abuso sexual de crianças é horrível e deve ser severamente punido, seja quem for que estiver envolvido. Mas a sentença proferida ontem pelo coletivo liderado pela juíza Ana Peres é perturbante. E é-o porque assenta nas 43 alterações das datas e locais onde teriam ocorrido os abusos sexuais solicitadas pelo procurador João Aibéo já durante a fase das alegações finais, sem a concordância dos advogados dos arguidos mas sobretudo sem estes terem tido possibilidade de contraditar essas mudanças. E se a isto se juntar o facto de o tribunal não ter comunicado porque deu como provados esses factos, tudo se torna ainda mais perturbante. Não é esse o reino da justiça. Não é isso que caracteriza um Estado de Direito.

Seria incompreensível para a opinião pública que um processo tão mediatizado como este terminasse sem condenações. Mas também é incompreensível que, num caso tão grave, se possam ter aplicado penas com base em argumentos que aparentemente não assentam em factos incontroversos e irrefutáveis.

Não, a justiça portuguesa não se redimiu através do caso Casa Pia, apesar das condenações que proferiu, por mais justas que algumas delas possam ser.

48. Marinho Pinto -Bastonário da OA - 12.09.2010

Jornal de Notícias -12.09.2010

A Justiça dos Homens

Por: Marinho Pinto

Há dois mil anos, na Palestina, um Nazareno inocente foi condenado à morte por uma multidão de pessoas fanatizadas naquele que é até hoje o mais famoso julgamento da história da humanidade. O que mais me impressiona nesse julgamento não é o facto de o arguido estar inocente, pois sempre houve e haverá inocentes condenados; também não é a brutalidade da sentença, pois a pena máxima sempre foi a preferida das multidões; não é sequer a certeza irracional da turba sobre a culpabilidade do acusado, pois todas as multidões (as massas, como dizem alguns) são sempre irracionais e só têm certezas (por mim fujo sempre delas, seja nos estádios de futebol, seja nas procissões políticas ou sindicais, seja nas manifestações públicas de qualquer religião).

O que ainda hoje me impressiona naquele julgamento é o facto de, então, ninguém ter erguido a voz para defender o arguido ou sequer para manifestar dúvidas sobre a sua culpa. Ele, que pouco tempo antes arrebatava multidões, ele que fora a esperança para milhares de seguidores, de repente, estava ali sozinho, sem defesa, perante uma multidão que, embriagada com as suas próprias certezas, ululava pela execução da sentença que ela própria proferira.

O próprio julgador, que tinha os poderes para impedir a injustiça, cedeu às suas exigências e, apesar das dúvidas que chegou a manifestar, optou por lavar as mãos e entregar o acusado aos justiceiros. E mesmo aqueles que o sabiam inocente, não foram capazes de um gesto em sua defesa. Todos, por medo, vergonha ou cobardia, se calaram. E até os seus seguidores mais próximos negaram que o conheciam. E tudo isso aconteceu, não pela inexorabilidade de um desígnio profético, mas porque os senhores do Templo queriam a sua condenação a todo o custo e trabalharam para isso, manipulando e intoxicando a opinião pública de então. Dessa forma conseguiram o duplo objectivo de fanatizar uma parte da sociedade e calar os que tinham dúvidas ou acreditavam na sua inocência do acusado.

Casos semelhantes surgiram aos milhões ao longo da história da humanidade e repetem-se ainda hoje um pouco por todo o mundo, sempre com a intolerância e o fanatismo a aniquilar o direito de defesa dos acusados. Desde os inocentes que arderam nas fogueiras da Inquisição até aos condenados dos processos de Moscovo ou de Praga, para já não falar nos decapitados ou fuzilados de todas as revoluções e contra-revoluções, todos foram vítimas daquelas certezas absolutas que fanatizam as pessoas, por vezes até as mais generosas.

Por isso eu só acredito na justiça dos homens quando ela é feita no respeito por princípios que a relativizam e lhe impõem, como regra fundamental, o respeito absoluto por todas as pessoas envolvidas.

Por isso eu só acredito na justiça quando os que a administram respeitam os direitos de defesa e não os tentam esvaziar com alegações espúrias de excessos de garantismo.

Por isso eu só acredito na justiça quando ela é feita no lugar próprio que são os tribunais, por magistrados e advogados independentes e não nos órgãos de comunicação social por justiceiros de ocasião ou em instâncias não soberanas.

Por isso eu só acredito na justiça quando ela aceita sem dramatismos que é preferível inocentar um culpado do que condenar um inocente.

Por isso eu só acredito na justiça quando, em todos os seus trâmites, ela respeita o princípio da presunção de inocência até ao momento em que um veredicto de culpabilidade se torne definitivo por já não poder ser objecto de recurso ordinário.

Por isso eu só acredito na justiça quando ela é feita não em nome das vítimas, mas sim em nome dos bens jurídicos ofendidos com o crime e para reafirmar solenemente a validade desses bens, sem cedências a qualquer fundamentalismo justiceiro.

Por isso eu só acredito na justiça quando, havendo lugar ao ressarcimento moral das vítimas, ele não se faça através da humilhação pública dos condenados, sejam eles quem forem.

Por isso eu só acredito na justiça quando ela procura a verdade dos factos através de provas produzidas no próprio processo com respeito pelo princípio do contraditório e não com a informação tendenciosa de órgãos de comunicação social.

Por mim sempre lutei por esses princípios e, seja como bastonário da OA, seja como advogado ou como simples cidadão, nunca deixarei de erguer a minha voz em protesto contra a sua violação.

50. Tenho Medo

Expresso -11.09.2010

TENHO MEDO

Por: Pedro Adão e Silva (www.expresso.pt)

A justiça, para nos proteger a todos, não pode assentar em convicções subjetivas, formadas no espaço público e sugeridas pelos media. Pelo contrário, a justiça tem não só de se basear em factos e em evidências verificáveis como abstrair-se do que a comunidade pensa.

Se me perguntarem qual é a minha prioridade na educação dos meus filhos, direi que é garantir que eles não têm medo. Medo físico, medo das personagens assombrosas que lhes surgem nos sonhos, mas também que têm a coragem suficiente para fazerem face às tormentas com que se defrontarão ao longo da vida. Se tiverem confiança, o resto virá por acréscimo. Para parafrasear a escritora Natalia Ginzburg, em "Le piccole virtú" (infelizmente não traduzido em português), tendemos a ensinar às crianças muitas das pequenas virtudes (a poupança, a prudência, a astúcia, a diplomacia e o desejo de sucesso), mas nisso esquecemo-nos das grandes virtudes (a generosidade, o amor à verdade, a abnegação, a coragem e o desejo de saber mais).

Peço desculpa se, dito assim, parece uma questão privada, pouco adequada a uma coluna de opinião, por natureza pública. Infelizmente não é. Para que os meus filhos - e, acrescento, os nossos filhos - não tenham medo, tenho também de lhes poder dizer que, se for caso disso, a lei estará do lado deles para os proteger. É isso que me leva a fazer em público uma confissão que é semiprivada: eu tenho medo da justiça em Portugal e o que se vai sabendo do famigerado processo Casa Pia só consolida as minhas inquietações.

Tenho, como provavelmente a maioria dos portugueses, convicções subjetivas sobre a culpabilidade ou inocência dos envolvidos no processo e sobre o que se pode ou não ter passado em toda esta história. Mas a justiça, para nos proteger a todos, não pode assentar em convicções subjetivas, formadas no espaço público e sugeridas pelos media. Pelo contrário, a justiça tem não só de se basear em factos e em evidências verificáveis como abstrair-se do que a comunidade pensa.

Tudo o que não aconteceu ao longo do processo Casa Pia, marcado desde o início pelo justicialismo primário e pela construção de uma narrativa sobre a culpabilidade nos media. Oito anos passados, a única consequência palpável deste processo é que têm sido somadas vítimas às vítimas de abusos sexuais. A última das quais é o próprio sistema de justiça.

Uma coisa é acreditarmos na culpa ou inocência deste ou daquele arguido, outra é termos a certeza de que, em democracia, é impensável que alguém possa ser condenado apenas com base em prova testemunhal não sujeita ao escrutínio crítico, quando todos os outros elementos de prova ou não consolidaram os testemunhos ou contraditaram-nos mesmo. É mesmo um daqueles casos em que é preferível um culpado absolvido do que um inocente condenado. Mas não é apenas isso que está em causa.

É também um sentimento egoísta. Eu quero ter a certeza de que se um dia alguém apontar o dedo aos meus filhos, dizendo que eles cometeram um crime hediondo do qual estão inocentes, eles poderão defender-se e que a justiça estará do lado deles. E que nunca, em circunstância alguma, poderão ser condenados se não ficar claro como cometeram o crime, em que dia, em que lugar. Tudo o que seja diferente disto remete-nos para o reino da arbitrariedade e só pode causar perplexidade. Mas, acima de tudo, dá-nos boas razões para termos medo. Muito medo.

Custa-me muito ter de educar os meus filhos num país onde a justiça funciona assim.

51. Casa Pia: Justiça e Política

Casa Pia: Justiça e Política

Por: Joaquim Paulo Nogueira  -18.09.2010, no Facebook

É nestas alturas que mais tenho saudades do escrever na água, do Augusto Abelaira. Lembro-me de uma sua crónica, meia dúzia de linhas, ele, com o seu sincretismo, foi um verdadeiro percursor dos blogues e do facebook,  apenas escrevia, e cito de memória: "  uma das razões que faz com que pague com tanto entusiasmo os meus impostos é que sei que eles servem para pagar o funcionamento da máquina da justiça, libertando-me assim do pesadelo de julgar o meu semelhante."

1. Uma sentença política: se não houvesse condenações não havia vítimas.

A primeira vez que utilizei este argumento fui severamente atacado, por estar a misturar política com uma coisa que só teria a ver com  a Verdade. O que me faz temer o pior de uma discussão sobre os fundamentos da Justiça, já que se não formos capazes de reconhecer que eles são eminentemente políticos, ou seja, que visam garantir uma determinda coesão social e política estamos muito pouco aptos a aceitar, e assumir,  a sua fragilidade. É a minha opinião:  politicamente seria intolerável, para a credibilidade da Justiça, que os testemunhos das  vitimas dos abusos da Casa Pia não fossem reconhecidos como válidos. Queria dizer que os testemunhos dos arguidos tinham valido mais que o das alegadas vitimas. Porque a verdade é que é próprio deste tipo de crimes que seja muito dificil apurar a verdade.

Se partirmos do príncipio de que a maior parte dos arguidos, e principalmente aqueles que reclamam a sua inocência, têm uma vida social integrada na sociedade, deveremos pressupôr que os supostos crimes que cometeram só poderiam ter sido realizados se fossem realizados num outro domínio não público e, até mesmo, tão secreto que até os mais próximos não saberiam que eles teriam sido cometidos. E também, pela elevada consciência do risco que isso representava para as suas vidas, que deveriam ter usado todos os mecanismos para não serem apanhados nem deixarem rastro. Ou seja, a não existência de indícios, senão algo desconexos, que prove que estes arguidos cometeram os crimes, deve ser encarada como decorrente da própria natureza  dos crimes, que tendem para a sua dissimulação e encobrimento.

Por outro lado, a incongruência dos testemunhos também deve ser encarada como um dado resultante do comportamento das vitimas deste tipo de crimes. Nem é preciso fazer grandes extrapolações sobre isso: se nestes casos o que está em evidência é o crime de abuso de poder, o abuso sexual e a violação, não estamos a falar de crimes que sejam facilmente assumidos, nem pelas próprias vitimas que, muitas vezes, só muito mais tarde, em conversas com outros sujeitos vitimas, é que conseguem reconstituir não só a violência mas também, a necessidade de denunciar e de proteger outros da perpetuação destes abusos. Refira-se que estamos a falar de rapazes em situação social inferiorizada, onde a figura dos violadores e abusadores assume diferentes papéis, como o de pais, protectores.

É tecnicamente impossível garantir que, de uma forma genérica, a versão dos arguidos ou a das vítimas seja verdadeira e sendo a parte fundamental  o testemunho dos arguidos condenados, das vitimas e das testemunhas, para mim, a parte mais importante do acórdão é aquela que institui que aqueles miúdos foram de facto abusados e integrados numa rede de pedofilia  por um funcionário da Casa Pia e que houve conivência e protecção desse funcionário por parte da hierarquia, que desvalorizou não só a perigosidade do abusador, como silenciou as denúncias internas. Ou seja: aqueles miúdos foram de facto abusados, pressionados, chantageados, para prestarem serviços a estranhos e isso só foi possível porque a Instituição que os devia proteger beneficiou o criminoso. Não há outra leitura a fazer até aqui e é neste ponto, que, como bem disse Ricardo Sá Fernandes, este processo une todos, todos, contra o abuso sexual que aqueles rapazes foram vítimas.

Não reconhecer como válidos nenhuns dos seus testemunhos, e muitos foram invalidados, era repetir todo o calvário institucional que tinham passado, era não dar um sinal politico - e em tempos em que a discussão sobre a pedofilia atravessa toda a sociedade, incluindo comunidades fechadas como a religiosa - de que aquilo que tinha sido a marca da impunidade na Casa Pia era um pesadelo sem fim nem culpa. Não compete aos tribunais investigar, e muito já fez este no sentido de aclarar os locais, a percepção dos espaços.  Se a investigação criminal não correu da melhor maneira, e não correu, ela foi uma mancha que sujou inequivocamente o processo, isso não deve por si só invalidar a possibilidade daquele colectivo de juízes poder tomar uma decisão. Uma decisão que é, na minha opinião, eminentemente política. Independentemente de serem ou não culpaos, têm razão alguns dos condenados ao dizerem que serviram para uma tentativa de credibilizar a justiça. O que não seria nenhum problema, só por si. A justiça credibiliza-se quando, na dificuldade que é julgar, consegue produzir um juízo que resgata as vítimas, que dissuade a continuação da prática criminosa e não há dúvida de que esta sentença conseguiu isso, e mais até, uma modificação do clima e do ambiente na Casa Pia. 

2. As possíveis novas vitimas.

Só quem tem uma visão da Justiça que não se coaduna com a sua falibilidade ( Somerset Maughan, em Exame de Consciência, escrevia que gostava que os juízes em Old Baley tivessem, ao lado da marreta, um rolo de papel higiénico, para se lembrarem que são humanos) é que não admitirá como possível que às vitimas da Casa Pia se venham juntar agora as vitimas do Processo Casa Pia.

Quem vai a www.processocarloscruz.com  não pode deixar de ficar perplexo não já com as incongruências dos testemunhos dos miúdos, mas também com alguns dos comportamentos dos investigadores e até dos juízes, nomeadamente Rui Teixeira, que diz não se conhecerem assistentes que partilhavam o mesmo quarto e que tinham ligações de cumplicidade fortíssimas. Há também um caso gritante do caso de um inspector que, para uma televisão, diz que todos os miúdos apontavam para os mesmos lugares e espaços e tanto os desenhos como os vídeos de reconhecimento mostram que isso não é verdade. Ou de um procurador que oculta uma investigação às chamadas telefónicas porque ela "era uma não prova". Ou o facto de ele não ter sido investigado.

Só  aqueles que não resistem à tentação de julgar o seu semelhante é que poderão não compreender que me congratule quer com o facto de a sentença ter claramente assumido que aquelas crianças foram abusadas com a cumplicidade da Instituição, quer com a dignidade e o civismo com que Carlos Cruz continua a protestar a sua inocência. Mostrando as contradições, as incongruências e a tendência para produzir um (pré) juízo, fazendo o trabalho de investigação que deveria ter sido feito em sede de ijnvestigação criminal. A eloquência, o cuidado e o profissionalismo do seu site é algo que lhe devemos, como contributo de alguém que, justamente, se sente injustiçado.  

Eu não sei se aquelas crianças foram efectivamente abusadas pelo Carlos Cruz, nem me entretenho a tentar descobrir se, no caso negativo, as razões que poderão levar aqueles jovens a incriminá-lo. Não preciso disso. Quando tanto se fala de convicções, guardo duas deste processo:  1. Aquelas crianças foram abusadas e que para que esse abuso fosse possível foi necessário um suporte institucional  que protejeu Carlos Silvino da Instituição (e que  decorre de, para mim, o Tribunal ter conseguido prová-lo  de uma forma satisfatória). 2. Carlos Cruz é, muito provavelmente,  uma nova vítima do Caso Casa Pia ( convicção que decorre de, para mim,  ter conseguido demonstrar de forma satisfatória e convincente  que a investigação criminal que suportou o processo judicial não o investigou de forma cabal, não explorando as inúmeras contradições da factualidade em que se ancorava).

Eu estou, inequívocamente, solidário com todas as vítimas do Caso Casa Pia.

52. Correia da Fonseca - jornalista e crítico de televisão

http://www.odiario.info/?p=1737

O Caso Casa Pia

 

Por: Correia da Fonseca

13.09.2010

Estamos habituados a considerar que o fenómeno televisivo é qualquer coisa que começa algures no estúdio de uma operadora, que passa por umas antenas e/ou por uns cabos, para terminar nos ecrãs que temos em nossas casas. Não é assim: o tal fenómeno entra-nos pelos olhos e ouvidos adentro, instala-se nas nossas cabecinhas, e lá fica a germinar com maior ou menor força, conforme os casos, sem que claramente demos por isso.

Mais ainda que do empate da selecção nacional com a equipa do Chipre (país que, para ainda maior arrelia de alguns, consta ter um governo de maioria comunista, se me engano peço desculpa), a passada sexta-feira foi, na televisão e fora dela, o dia do veredicto do Caso Casa Pia. À leitura do veredicto ou do que foi anunciado como sendo a sua súmula ainda pude assistir, via TV, no conforto da minha casa. Logo a seguir, porém, tive de transferir-me para a sala de espera de um consultório médico, o corpo tem destas exigências, e só à hora habitual dos grandes telenoticiários da noite pude reencontrar-me com o meu televisor. A verdade é que não dei a interrupção por tempo perdido, mesmo no que respeita à avaliação dos poderes da TV num país como o nosso e, muito provavelmente, em qualquer outro. Estamos habituados a considerar que o fenómeno televisivo é qualquer coisa que começa algures no estúdio de uma operadora, que passa por umas antenas e/ou por uns cabos, para terminar nos ecrãs que temos em nossas casas. Não é assim: o tal fenómeno entra-nos pelos olhos e ouvidos adentro, instala-se nas nossas cabecinhas, e lá fica a germinar com maior ou menor força, conforme os casos, sem que claramente demos por isso. De onde, é claro, o seu assustador poder.

Pois aconteceu que na tal sala de espera do consultório a televisão continuava activa ou pelo menos assim me pareceu. Não por causa do televisor que ali estava colocado para embalar a longa espera dos pacientes (e poucas vezes esta palavra terá sido tão adequada à situação), mas sim porque a sua acção estava muito evidentemente a prosseguir na cabeça dos que ali estavam, sobretudo das senhoras, talvez mais vulneráveis aos efeitos da actividade mediática em geral e televisiva em particular. Assim, mesmo à revelia do que o televisor naquela altura mostrava e não tinha nada a ver com o assunto do dia, era do Caso Casa Pia, do veredicto tornado público horas antes e dos arguidos sentenciados, que as conversas aliás muito vivas se ocupavam. Sobretudo do arguido Carlos Cruz, decerto por ser a mais conhecida figura pública envolvida e também, provavelmente, por ter sido o que com maior veemência havia protestado contra a decisão do colectivo de juízes. E os comentários ali produzidos não eram nada meigos. Dizia uma que o que eles deviam ser era todos mortos. Concordava outra, mas acrescentando que antes deviam ser castrados, e em público. Dizia ainda outra que sim, mas depois queimados na praça pública. Aí eu comecei a sentir um cheiro a chamusco e a lembrar-me dos velhos autos-de-fé no Terreiro do Paço e no Largo de S.Domingos. E a perguntar-me onde se enraizava tamanha sanha.

Com razão ou sem ela, por referências avulsas que ia ouvindo, julguei descobrir que as excelentes senhoras ali reunidas tinham formado a sua opinião a partir do que ao longo de anos tinham ouvido e visto nos seus televisores: dos já antigos teledepoimentos de uma senhora jornalista do semanário do dr. Balsemão, das entrevistas de face oculta feitas às vítimas, das fragorosas acusações formuladas pelo advogado de Bibi, de outros elementos que ainda bem recordavam. Por isso não tinham dúvidas: aos patíbulos, já! E, então, designadamente e sobretudo no que se refere a Carlos Cruz (porque, embora julgados em conjunto, aqueles seis arguidos não eram iguais entre si como seis gotas de água), uma pergunta impertinente começou a incomodar-me como uma espécie de prurido. E se o homem tiver sido alvo de uma armadilha tecida a mando de um sujeito que em dada altura se tenha sentido ferido e mesmo publicamente humilhado pelo «apresentador de televisão», para usar aqui a fórmula redutora e pouco exacta como Cruz tem agora sido referido? E se esse sujeito for suficientemente poderoso no plano financeiro para mandar pagar muito bem aos que aceitassem colaborar no plano (ainda que muitos deles tivessem um preço baixo) e bastante influente no plano social para estar supostamente acima de qualquer suspeita? E se a velha ofensa estiver esquecida por todos ou quase todos, excepto pelo ofendido e o ofensor? E se, incómoda pergunta final, a TV dos privados com bastos capitais também puder servir para coisas destas?

A dada altura como que despertei de uma espécie de sonho ou de pesadelo que me assaltara de olhos abertos e ouvidos atentos: aquilo devia ter sido o resultado da enfadonha espera. Mas mesmo passadas horas o prurido não se dissipou totalmente. É de crer que a mistura da TV com um coral de senhoras iradas e com o desconforto de um consultório médico resulte num composto indesejável.

57. Carlos Tomás in Noticias sem Censura

Nota Prévia: -Em 2003 e 2004 e mesmo 2005 (e ainda ao longo destes anos todos) a Comunicação Social publicou milhares e milhares de manchetes e notícias apostada em apoiar a acusação. E quase cem por cento sem contraditório. Agora que são divulgados novos factos que começam a pôr em causa todo o processo, agora que Catalina Pestana, Dias André e Olga Miralto "raptam" uma vítima para a subornar (segundo versão da vítima), caíu o silêncio da Imprensa, Rádio e Televisão sobre o dever de informar, negando aos cidadãos o direito à informação. Silêncio ensurdecedor! Má consciência ou Censura?

***

Desde o início deste processo Carlos Tomás viu a mentira. Pagou por denunciá-la, ainda antes de haver acusação. Mas nunca largou o caso porque apostou em denunciar o que sabe e o que vai descobrindo.

Continua a pagar por isso: lembram sempre que ele colaborou num livro da Marluce em 2004 (para o tentarem ligar a mim); deixam que falem dele na televisão sem nunca lhe darem o direito ao contraditório (salvo pequena excepção da RTP); dão tempo de antena a Felícia Cabrita mas não a confrontam com ele.

Ostracizado por quem devia ser seu aliado no serviço público de informar os portugueses, Carlos Tomás resolveu lançar mão do Facebook. Aconselho a sua frequência.

Obs: clicando nos símbolos do Facebook vai directamente para a página "NOTÍCIAS SEM CENSURA".

Nunca fomos amigos. Mas agora, sinto por ele uma profunda admiração e respeito.

Ficam aqui algumas das suas notas no Facebook começando como uma sobre Bernardo Teixeira (aliás Vando) o tal que acusou Herman José quando este estava no Brasil!

Será ele o novo porta-voz depois de Francisco Guerra estar completamente destruído pelas mentiras que publicou, disse e propalou com a bênção de Catalina, Dias André e Olga Miralto e das televisões, numa operação de marketing para vender um livro ridículo? O futuro o dirá.

Ainda sobre o livro de Francisco Guerra apenas uma nota - o Ministério Publico é contra a sua junção ao processo. Tal como já tinha e continua a ser contra a leitura (junção) das declarações de Francisco Guerra à Policia Judiciária.Porque será?

 

                                              

 

 

 

No "Grupo Notícias Sem Censura", Carlos Tomás escreve:

Sobre Francisco Guerra

 

Encontro na Procuradoria Geral da República

 

 

 

Mais de 200 nomes


 

Convicções e Sentenças 

Estes textos foram copiados da página NOTÍCIAS SEM CENSURA, do Facebook, e são da autoria do Jornalista Carlos Tomás


AS CONVICÇÕES VALEM O QUE VALEM

Na Justiça, como em tudo na vida, as convicções valem o que valem. Ou seja: zero. Isto, porque elas podem ser validadas ou não e variam de pessoa para pessoa. Ninguém pode ser condenado com base em convicções. A convicção é castradora e inimiga da verdade. As convicções levaram à Inquisição, à caça às bruxas e ao nazismo.
Os arguidos do processo Casa Pia foram condenados a penas compreendidas entre os cinco e os 18 anos de prisão efectiva porque os juízes que os julgaram não quiseram saber das provas (ou da falta delas). Estavam convictos da culpa e dos arguidos. Apesar de ter ficado amplamente demonstrado em julgamento que, com a óbvia excepção de Gertrudes Nunes e Hugo Marçal, que viviam lá, nunca estiveram em Elvas no período a que reportam os abusos que lhes foram imputados, nem num prédio da Avenida das Forças, em Lisboa, nem numa desconhecida casa da Buraca, nem poderiam ter abusado de quem quer que fosse nos outros locais referidos no acórdão, o colectivo entendeu que sim. E entendeu que sim, simplesmente porque as vítimas disseram que eles estiveram lá.
Provas para validar essas convicções? Nem uma. Pelo contrário. Em tribunal ficou claramente demonstrado que ninguém podia ter entrado no prédio da Avenida das Forças Armadas, onde Carlos Cruz terá cometido vários crimes, pela porta indicada pelas alegadas vítimas. Em Elvas ninguém viu lá os "abusadores". A clínica do médico Ferreira Diniz não existia na altura em que se diz que lá cometeu abusos, uma casa no Restelo era, afinal, um estúdio de audiovisuais, na Provedoria da Casa Pia seria impossível Manuel Abrantes abusar de alguém sem que fosse visto, inclusive pela mulher, que trabalhava lá, etc, etc...
Mas vamos por partes.
O tribunal admite que não tem provas directas dos abusos. Mas condena todos os arguidos, com excepção da dona da casa de Elvas. Como provas de que os abusos ocorreram apenas apresenta os testemunhos (não de todas as alegadas vítimas, nem os depoimentos totais das vítimas que terão sido abusadas, só algumas partes) das supostas vítimas e as declarações sem nexo do arguido Carlos Silvino que, como é público, já revelou que inventou tudo por força da forte medicação a que foi sujeito e devido à manipulação do seu advogado e dos investigadores do processo.
No entanto, o tribunal concluiu que se as alegadas vítimas dizem - e porque até demonstraram uma postura em tribunal credível -, então é porque estão a dizer a verdade. Não tinham, diz o tribunal, razões para mentir (os 50 mil euros que o ministro Bagão Félix resolveu pagar a cada um deles para não processarem o Estado e as indemnizações que pediram aos arguidos são apenas um pormenor).
O quê? O jovem não identificou o apartamento em concreto do prédio da Avenida das Forças Armadas onde Carlos Cruz terá cometido abusos? Não há problema, em vez de ser no apartamento "X", passa a ser algures numa fracção do prédio. Não podiam ter entrado por aquela porta? Então entraram por outra... Pode não ter sido num sábado? Então damos como provado que foi num dia da semana (assim o sábado também ficaria incluído)...
As testemunhas dizem todas que nunca viram os arguidos nos locais referidos. Mas isso também não é problema. O tribunal provou que as testemunhas eram todas amigas dos arguidos, vizinhas, familiares ou das suas relações profissionais, pelo que os seus depoimentos não eram credíveis. Então se os acusam de estar num sítio, os arguidos não podem arrolar como testemunhas familiares, vizinhos das casas onde os abusos terão ocorrido, nem pessoas das suas relações profissionais? Quem chamavam a testemunhar? Uma pessoa que mora na Baixa da Banheira para testemunhar se eles estiveram ou não numa casa em Elvas? Surreal.
Dado provado, é que os abusos ocorreram sempre num ano que tanto podia ser 2000, como 1999 (e assim sucessivamente), num dia indeterminado e até em locais indeterminados ou que simplesmente não existiam à data dos supostos abusos.
O Dr. Ferreira Diniz, por exemplo, é acusado de abusar de uma das vítimas numa clínica que ainda não existia. E o quê que o tribunal diz: o rapaz deve-se ter enganado, queria dizer que foi na clínica antiga, que por acaso até fica noutro local, e baralhou-se. O caso do Dr. Manuel Abrantes é ainda mais inacreditável. O homem é acusado de ter abusado de um menor numa casa na Buraca (Amadora). A vítima diz que se lembra que era na Buraca porque viu uma placa a dizer "Buraco" e isso chamou-lhe a atenção. Mas depois indica uma casa que não tem nada a ver com o local que descreveu ao tribunal. E como é que o tribunal resolve o problema: o rapaz descreveu a casa onde foi abusado com tantos pormenores, que essa casa tem de existir e ele foi mesmo abusado lá. Portanto, ficou provado que o Dr. Abrantes abusou da vítima numa casa algures na Buraca, que o tribunal não conseguiu localizar, em data que o tribunal também não conseguiu determinar. O tempo e o espaço não são relevantes, porque a vítima foi mesmo abusada. Não importa onde nem quando.
Em jornalismo aprende-se que uma notícia para ser bem elaborada deve responder a pelo menos seis perguntas: quem, quando, onde, porquê, como e o quê. Nem esta simples regra o tribunal conseguiu aplicar na sentença que proferiu.
Além disso, quem é o tribunal para presumir em nome das vítimas? Está a julgar ou a fazer suposições? Depoimentos credíveis? Por acaso algum dos magistrados é psiquiatra?
E que dizer da interpretação das perícias médicas feitas aos jovens: é verdade que todos apresentavam sinais de práticas sexuais no ânus. Mas é impossível determinar quando é que tais práticas ocorreram e muito menos com quem. Terão sido vítimas de abusos? Não há dúvidas. Mas abusadas por quem?
Quanto à credibilidade das vítimas é o próprio tribunal que dá a resposta na sentença, ao dizer que alguns dos depoimentos das vítimas não eram consistentes e, mais, que mesmo dos depoimentos das vítimas em que o tribunal diz que conseguiu provar quem abusou delas, só algumas partes é que mereciam credibilidade.
Assim, provou-se, por exemplo, que uma das vítimas de quem Carlos Cruz terá abusado em Elvas só falou a verdade quando disse que o apresentador lhe fez sexo oral. Mas quando diz que nesse dia indeterminado foi abusado por outra pessoa, que identificou nos autos, e diz que na casa estavam outras pessoas, nomeadamente outros arguidos, já está a ser pouco credível. Então um depoimento é só metade verdade? Ou é credível ou não é. Se o tribunal credibiliza a vítima tem de credibilizar tudo o que ela denuncia, não uma parte. Acresce que o Tribunal da Relação já tinha considerado esta testemunha pouco credível quando um dos arguidos preso preventivamente foi posto em liberdade. Então o que a Relação diz não vale de nada? Cada cabeça sua sentença? É assim que se administra a justiça neste país?
Outro facto assustador é o tribunal dizer, para justificar a pena que aplicou, que os arguidos não mostraram arrependimento dos crimes. Arrependimento??? De quê??? Se, como dizem os arguidos, não fizeram nada nem o confessaram em tribunal, iriam arrepender-se porquê?
E o tribunal também diz que ficou provado que os arguidos bem sabiam que as supostas vítimas eram menores e que estava a agir conscientemente? Como, se, como garantem, até serem acusados, supostamente nem as conheciam?...
Facto espantoso é o tribunal dizer no acórdão que Carlos Cruz, para dar mais um exemplo relacionado com a figura mais mediática do processo, usou dezenas de telemóveis. Então o tribunal sabe quantos telemóveis Cruz usou, descobriu que ele nunca falou com nenhum dos outros arguidos nem com as supostas vítimas e chega à brilhante conclusão de que ele podia ter recorrido a uma forma menos sofisticada para comunicar? Como? Com sinais de fumo? Pela Internet, que eu sei que Carlos Silvino nem sequer sabe usar? Então porque motivo não lhe apreenderam os telemóveis, nem os computadores e nem uma busca fizeram à casa do "perigoso pedófilo" nem antes nem depois da sua detenção?
Parece claro que se as autoridades não investigaram mais foi porque não quiseram. Tempo não faltou. E por falar em convicções: eu tenho a convicção de que o colectivo que julgou o processo casa Pia foi composto por incompetentes. Se tenho provas? Não! Mas, pelos vistos, basta-me ter a convicção para ser verdade...

RESUMO SIMPLES DA SENTENÇA DO PROCESSO CASA PIA

O colectivo de juízes que julgou os arguidos do processo da alegada pedofilia na Casa Pia de Lisboa não teve dúvidas em dar como provado que Carlos Cruz e restantes arguidos cometeram mesmo os crimes que lhes foram imputados e que justificam as penas aplicadas. Porém, o colectivo de juízes, composto por Ana Cardoso Peres, Ester Pacheco dos Santos e José Manuel Barata, também reconheceu que não foi possível obter qualquer prova directa que incriminasse os arguidos. Assim, foram todos condenados com base na convicção dos magistrados judiciais, que acreditaram, ainda que parcialmente e conforme dava jeito, nas versões das testemunhas/vítimas e na confissão de Carlos Silvino que assegurou não só conhecer os arguidos há vários anos, como também garantiu que lhes levava jovens casapianos para serem vítimas de abusos sexuais.
"A natureza e diversidade da prova que chegou aos autos, através das testemunhas, não fornece prova directa para dar como provados ou não provados os crimes. Deram sim, maior ou menor relevância dos factos que, conjugados entre si e com a demais prova em apreciação, concorreram para o tribunal chegar à sua decisão de facto e dizer porque motivo deu maior credibilidade a um depoimento em detrimento de outro ou a uma declaração em detrimento de outra", lê-se na sentença.
Ainda de acordo com o documento, a prova testemunhal apresentada pelos arguidos não foi valorada, uma vez que eram, na maioria, pessoas amigas ou que mantiveram relações profissionais com os arguidos (pelos vistos e por esta ordem de ideias, só extraterrestres poderiam ser considerados isentos pelos magistrados do processo). O colectivo lembrou que neste tipo de crimes é frequente as pessoas das relações próximas dos abusadores não se aperceberem das actividades dos criminosos, facto que não significa que os crimes não tenham acontecido.
Assim, o tribunal, sem que isso apareça sustentado na sentença com outras provas que não sejam os depoimentos das alegadas vítimas e a confissão de Carlos Silvino, considerou provado que Carlos Cruz abusou de um menor de 14 anos numa fracção do Lote 3, nº 111 da Avenida das Forças Armadas (não se refere qualquer andar ou apartamento), em Dezembro de 1999 ou Janeiro de 2000 e em dia não determinado (terá, segundo o tribunal deu como provado, abusado também de outro jovem, mas o apresentador não foi acusado por isso). A vítima foi levada para a referida casa por Carlos Silvino numa viatura de marca desconhecida.
Eclipse dos abusadores em Elvas
Outro facto dado como provado pelo tribunal, é que apenas Hugo Marçal e Carlos Cruz abusaram de crianças na casa pertence à arguida (absolvida) Gertrudes Nunes, em Elvas. Não se provou que os outros arguidos, amplamente referenciados pelas alegadas vítimas nas fases de inquérito, instrução e julgamento, alguma vez tenham abusado de alguém naquela cidade. Ou seja, a denominada "casa das orgias" era frequentada, segundo a sentença, por Cruz, Hugo Marçal e desconhecidos. Ferreira Dinis, Jorge Ritto, Manuel Abrantes e outras pessoas identificadas ao longo do processo pelas vítimas não constam como abusadores de Elvas.
O colectivo de juízes não conseguiu localizar nenhuma chamada telefónica entre os arguidos, ou entre os arguidos e as vítimas. Mas tal facto foi desvalorizado pelos magistrados, que salientaram que Carlos Cruz e restantes arguidos poderiam ter usado outros telemóveis e telefones que não os escutados e identificados pelas autoridades. Os juízes também admitem que os arguidos poderiam combinar as coisas de uma forma mais simples e directa, "sem necessidade de artifícios elaborados" (quiçá através de sinais de fumo).
Outro facto que realça da leitura da sentença prende-se com as constantes contradições nas descrições dos locais onde as vítimas alegadamente terão sido abusadas. O colectivo entendeu que isso não era relevante, porque o "facto de os abusos não serem bem localizados no tempo e no espaço não significa que eles não ocorreram". Assim, o tribunal entendeu que Manuel Abrantes abusou mesmo de um menor "na Buraca, em dia indeterminado, numa casa que o tribunal não conseguiu identificar." No entendimento dos magistrados, o abuso ocorreu, não sendo a descrição da casa feita pela vítima - que teve várias versões - relevante para provar o crime. (Foi numa casa qualquer da Buraca e pronto. A testemunha descreve a casa é porque ela existe e se o arguido diz que não é porque está a mentir).
O mesmo se passa com um dos abusos do médico Ferreira Dinis e que o tribunal deu como provado. A vítima descreveu e identificou ao tribunal uma clínica onde terá sido abusada pelo médico em 1998, mas depois comprovou-se que a referida clínica só foi inaugurada em Setembro de 2001. Os juízes consideraram ser natural que o jovem se tenha enganado e que, na realidade, ele queria referir-se à clínica que o médico tinha em 1999 e que funcionava noutra zona de Lisboa. Mas a descrição feita pelo indivíduo em julgamento é da clínica actual e não da antiga. A mesma vítima e outros jovens também identificam o Ferrari de Ferreira Diniz, mas o médico comprou o carro já depois das datas em que lhe são imputados os crimes por que foi julgado. Ilídio Marques, testemunha/vítima, já disse que nunca descreveu o consultório e que assinou o auto onde essa descrição é feita sem sequer o ler. "Já estava escrito e falei num aquário porque me disseram que ele existia e até tinha peixes tropicais", disse recentemente na SIC quando questionado pela apresentadora Júlia Pinheiro.
Irrelevante para o tribunal foi igualmente o facto de os jovens que disseram ter sido vítimas de abusos por parte do embaixador Jorge Ritto descreverem as várias casas onde estiveram e, afinal, nenhuma corresponder à casa do embaixador ou a qualquer outra a que o diplomata tivesse fácil acesso.
O tribunal refere que fundamentou a sua convicção no facto de os discursos dos jovens, apesar de vagos e pouco consistentes, serem coerentes e os jovens terem tido posturas em tribunal que levaram a concluir que eles não estariam a mentir em relação aos abusos de que foram vítimas por parte dos arguidos.
O facto de a prova condenatória se basear apenas nos depoimentos das alegadas vítimas e na confissão de Carlos Silvino volta agora a ser abalada pelo próprio Carlos Silvino que, no início do processo sempre negou os factos e pela entrevista de Ilídio Marques. Só em finais de Agosto de 2003, mais de meio ano após o início das investigações, é que Carlos Silvino, tendo já José Maria Martins como seu advogado, passou a acusar os arguidos que se sentaram com ele no banco dos réus, deixando, mesmo assim, Manuel Abrantes de fora. O ex-provedor só seria implicado pelo ex-motorista já na fase de instrução. Ilídio Marques assegura que tudio não passou de uma invenção das testemunhas/vítimas, ele incluído.
Recorde-se que o ex-motorista da Casa Pia Carlos Silvino foi condenado a 18 anos de prisão, o apresentador televisivo Carlos Cruz a 7 de cadeia, o ex-provedor Manuel Abrantes a 5 anos e 9 meses, o embaixador Jorge Ritto a 6 anos e 8 meses, o médico Ferreira Dinis a 7 anos e o advogado Hugo Marçal a 6 anos e 2 meses. Todos os arguidos foram ainda condenados a pagar chorudas indemnizações cíveis por danos morais às supostas vítimas.
Para a posteridade nos meios jurídicos irá certamente ficar a expressão consagrada no acórdão subscrito pelas juízas Ana Peres e Ester Santos e pelo juiz Lopes Barata: "Notou-se uma 'ressonância da verdade' nos depoimentos dos assistentes." Resso... o quê?

Poder ou não poder

Estes textos foram copiados da página do Facebook "NOTÍCIAS SEM CENSURA" e é da autoria do jornalista Carlos Tomás.


"PODEM" O QUÊ?

(Outra análise ao acórdão)

Antes de mais gostaria de esclarecer que não sou jurista, razão pela qual esta análise tem de ser entendida como sendo feita por um leigo no que às leis dizem respeito. Mas é como leigo que fica cada vez mais surpreendido quando perco algum tempo a ler o acórdão que condenou seis dos sete arguidos do denominado Processo Casa Pia. Uma das coisas que me chamou a atenção foi o uso e abuso da palavra "PODEM" em todo o documento. Contei pelo menos 90 vezes a sua utilização por parte dos três juízes que integraram o colectivo. A mim ensinaram-me que em jornalismo nunca devemos utilizar em títulos a palavra "podem", porque não é objectiva e porque "poder" pode, efectivamente, ser muita coisa. Poderia não ser grave, se aquilo que está em causa não fosse a decisão da vida futura de muitas pessoas, nomeadamente dos arguidos e das suas famílias. Se o que não estivesse em causa não fosse condenar ou absolver alguém da prática de um dos crimes mais hediondos que podem ser cometidos: o abuso sexual de menores - não utilizo o termo pedofilia propositadamente, porque não é de pedofilia que este processo trata, ao contrário do que muitos órgãos de comunicação social e pessoas com grandes responsabilidades sociais fazem crer.
Vejamos alguns exemplos da gravidade em que o colectivo de juízes usa a palavra "PODEM":
"Quanto a Wilson Semedo: Que os factos descritos a fls. 576 da acusação, numa "... casa localizada perto de Sete Rios, sita na Rua Alberto de Sousa, nº 1, que o arguidodisse ser sua ..." e que a acusação imputa terem-se passado durante o ano de 2000, PODEM ter ocorrido: "em data não concretamente apurada do ano de 2002, mas situada entre Março e Abril, inclusive, de 2002";
"Quanto a Fábio Cruz: Que os factos descritos a fls. 580 da acusação, passados no ano de 2001 em Vila Viçosa, numa casa sita no Largo de Palmes, sem número, ‘... na noite de 25 para 26 de Agosto ...', PODEM ter ocorrido: na noite de 24 para 25 de Agosto...";
"Factos relativos ao Assistente Francisco Manuel Alves Guerra, em que é imputada a prática de crime(s) ao arguido Carlos Silvino da Silva: que os factos descritos a fls. 20.850 a 20.853, Ponto 2.3., do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.852, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido na casa do arguido Carlos Silvino da Silva ...que então era um barracão situado no interior das instalações do colégio de Nuno Alvares, PODEM ter ocorrido: na garagem d1. Que os factos descritos a fls. 20.876 a 20.881, Ponto 4.1.1., do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.876, 3° ( terceiro parágrafo),factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido ‘...num dia indeterminado situado entre Outubro de 1998 e Outubro de 1999, tinha o menor 14 anos de idade ...' PODEM ter ocorrido: em dia não concretamente apurado, situado entre o fim do ano de 1997 e Julho de 1999, tinha João Paulo Lavaredas 13/14 anos de idade";

"1,2,3" POR 50 MIL EUROS DIGA NÚMEROS ÍMPARES

"Factos relativos ao Assistente Ricardo Necho, em que é imputada a prática de crime(s) ao arguido Jorge Leitão Ritto: Que os factos descritos a fls. 20.887 a 20.892, "Ponto 4.2.1.", do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.888, último parágrafo e fls.20.889, 1 ° parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido ‘...em data não concretamente apurada, do mês de Novembro de 1999, num Sábado à noite, tinha o Ricardo Necho completado 13 anos de idade ...', tendo, após o jantar, o arguido Jorge Ritto proposto que se dirigissem para uma casa de que ‘...tinha a disponibilidade, sita na Alameda D. Afonso Henriques, nº 47, em Lisboa ...', PODEM ter ocorrido: em dia não concretamente apurado, numa sexta-feira ou num sábado à noite, situado entre 12/12/98 e Janeiro de 1999 (inclusive);o Colégio de Pina Manique em prédio localizado na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, com número de porta não concretamente apurado, mas localizado na lateral da Alameda D. Afonso Henriques, ONDE SE SITUAM OS NÚMEROS ÍMPARES, local para onde, após o jantar, o arguido Jorge Leitão Ritto foi com Michael John Burridge, com o Ricardo Necho e os irmãos deste Márcio e Fernando";
"Que os factos descritos a fls. 20.887 a 20.892, Ponto 4.2.1., do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.889, penúltimo parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido ‘...em dia não concretamente apurado, do mês de Junho do ano 2000, a uma sexta feira...', numa casa de que o arguido Jorge Leitão Ritto ‘...tinha a disponibilidade, sita na Avenida da República, em Lisboa ...', PODEM ter ocorrido: em dia não concretamente apurado, mas situado entre Abril e Julho de 1999, numa casa sita na Avenida da República, em Lisboa, perto da zona da Feira Popular (...), local onde o arguido Jorge Leitão Ritto se encontrava quando o Assistente Ricardo Necho aí foi;"

NÃO FOI AQUI FOI ACOLI

"Factos relativos ao Assistente Luís Marques, em que é imputada a prática de crime(s) ao arguido João Ferreira Dinis: Que os factos descritos a fls. 20.896 a 20.898, Ponto 4.4.1., do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.896, 50 parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido na ‘...casa do arguido João Ferreira Dinis, sita na Rua Gonçalo Velho Cabral, nº 41, Restelo, em Lisboa...', PODEM ter ocorrido: em moradia não concretamente apurada, mas localizada no Restelo, em Lisboa, no Bairro de moradias onde se situam as Ruas Gonçalo Velho Cabral e a Rua António de Saldanha e na zona dessas ruas";
Factos relativos ao Assistente Daniel Alexandre Mesquita Basto, em que é imputada a prática de crime(s) ao arguido Carlos Silvino da Silva: Que os factos descritos a fls. 20.956 a 20.959, "Ponto 9.3.", do Despacho de Pronúncia, concretamente os factos que constam a fls. 20.957, ocorridos numa colónia de férias de Paderne, que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido no ano de 2001, ‘...em dia indeterminado situado na primeira quinzena do mês de Agosto, tinha o menor Daniel Basto 12 anos...', PODEM ter ocorrido: em dia não concretamente apurado na primeira quinzena do mês de Agosto de 2002, tinha Daniel Alexandre Mesquita Basto 12 anos";
Factos relativos ao Assistente João Paulo Nunes do Corro Lavaredas: (...) Que os factos descritos a fls. 20.911 a 20.913, "Ponto 5.2.5.", do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.911, 1° (Primeiro) e 3° (Terceiro) parágrafos, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido na sequência de o arguido Carlos Silvino da Silva ter levado ‘...o menor João Paulo Lavaredas (...) ao Campo Pequeno, em Lisboa, onde o aguardava o arguido Carlos Cruz ...', PODEM ter ocorrido: na sequência de o arguido Carlos Silvino da Silva ter dito a João Paulo Lavaredas para ir ter à rua que se situa nas traseiras do Colégio de Pina Manique, onde um veículo em que estava o arguido Carlos Pereira Cruz o aguardava";
"Factos relativos ao Assistente João Paulo Lavaredas, em que é imputada a prática de crime(s) ao arguido Manuel José Abrantes: Que os factos descritos a fls. 20.876 a 20.881, "Ponto 4.1.1.", do Despacho de Pronúncia, concretamente o que consta a fls. 20.876, 3° parágrafo, factos que o Despacho de Pronúncia diz terem ocorrido ‘...num dia indeterminado situado entre Outubro de 1998 e Outubro de 1999, tinha o menor 14 anos de idade...' PODEM ter ocorrido: em dia não concretamente apurado, situado entre o fim do ano de 1997 e Julho de 1999, tinha João Paulo Lavaredas 13/14 anos de idade";

TIRA DAQUI COLA ACOLÀ
E os relatos com o PODEM TER OCORRIDO continuam por uma dezena de páginas do acórdão. Para depois o colectivo chegar a esta "BRILHANTE" conclusão: "PODEM haver razões especificas que levaram à atribuição ou não atribuição de isenção, objectividade e em consequência credibilidade, a algumas testemunhas e declarantes, o que, consequentemente, influenciou o Tribunal quanto à atribuição ou não de veracidade ao que foi dito ou à medida em que foi atribuída ou não veracidade a alguns aspectos do depoimento ou das declarações. Contudo, há situações em que o Tribunal considerou ter mais sentido mencionar desde já e de forma global essas razões específicas - podendo assim manter melhor continuidade e fluidez da exposição na fase da análise crítica da prova -. pois os seus depoimentos ou declarações irão ser usados pelo tribunal para fundamentar diferentes núcleos de factos e, portanto, irão ser inseridos de forma fragmentada em diferentes partes da análise crítica da prova."
PASME-SE: OS JUÍZES ASSUMEM QUE VAI TIRAR AS FRASES DAS PESSOAS DO SEU CONTEXTO E INSERI-LAS ONDE LHES DER JEITO!!!
E justificam. "no entanto, sempre que o tribunal estiver a usar tais depoimentos ou declarações de forma fragmentada, os juízos que foram feito quanto à forma como o depoimento ou as declarações foram prestadas aplicam-se sempre e são pressuposto da sua utilização pelo tribunal. Mas há situações - e essencialmente no caso de assistentes que prestaram declarações por mais de uma sessão, tendo em atenção que houve assistentes que as prestaram por oito, dez ou treze sessões - em que verificando-se exactamente a mesma necessidade de especificar os juízos, razões e considerações que acima dissemos, quanto à isenção, objectividade, avaliação, credibilidade e veracidade do que foi dito e como foi dito ao Tribunal, o Tribunal considerou ter mais sentido fazer
essa avaliação específica, global e portanto mais completa não nesta fase, mas inseri-la na parte da análise crítica da prova. Tudo isto permite ‘perceber' e por vezes concluir, porque é possível que determinados comportamentos ou factos PODEM ter ocorrido em determinado momento, quando à ‘luz' dos valores dos nossos dias, ou analisando os seus protagonistas como se apresentam no ‘dia de hoje', isso ‘POSSA PARECER REMOTO ou mesmo INVEROSÍMIL.

A RESSONÂNCIA É TRAMADA
Porém, notam os magistrados: "Independentemente de estilos de vida, circunstâncias de uma vida ou opções legítimas de vidas com que possamos ser confrontados, estes crimes PODEM ser praticados por pessoas com enquadramento e relevo social, vida familiar e profissional reconhecida."
Atente-se nesta "pérola" produzida no histórico acórdão: "João Paulo Lavaredas, quanto a esta situação e na convicção do tribunal, descreveu pequenos elementos que dão credibilidade, pois são aqueles que dão uma RESSONÂNCIA acrescida de que é uma situação efectivamente conhecida. É certo que descreveu outros que podem ter tido o sentido de preencher o que dizia, com elementos que pudessem dar ênfase ao que relatava, para que o Tribunal acreditasse em si. Por exemplo, quando relata os diálogos que disse que o arguido Carlos Pereira Cruz teve consigo, quanto ao que iam fazer à Praia de Santo Amaro, mas isso, avaliado na dinâmica e na globalidade do relato feito, criou dúvida forte ao Tribunal, quanto à ocorrência deste acto de abuso que relatou, com a intervenção do arguido Carlos Silvino da forma que descreveu. Dizemos, ainda, a defesa do arguido Carlos Pereira Cruz pediu que o assistente explicasse porque é que anteriormente dissera diferente, quanto à ordem dos locais ( relacionados com o arguido Carlos Pereira Cruz) onde foi. Tentando e com calma, o Tribunal pediu a João Paulo Lavaredas para dizer a sequência do que se lembrava em relação ao arguido Carlos Pereira Cruz e João Paulo Lavaredas diz Santo Amaro/Cascais. E quando o tribunal lhe pergunta quando voltou a encontrar o arguido Carlos Pereira Cruz, o assistente refere ‘vi-o em Elvas... cheguei a vê-lo em Elvas... e estúdio... confusão... sei que ...não sei dizer se fui antes ou depois ...sei que fui lá...'.Concluindo o que acima dissemos, esta confusão é por mentira ou outra coisa? Para o Tribunal houve confusão na ordem, mas essência do discurso (...)."

E INTERROGARAM-SE!
Mas há mais material interessante no acórdão: "(...) o Lauro David Nunes, apesar de o seu depoimento ter tido incidências que podem revelar inconsistência, expôs-se. E este comportamento, para o tribunal, atenta a normalidade das coisas, é mais compatível com quem relembra uma verdade, do que quem reproduz uma mentira criada com terceiros. (...) Interrogámo-nos porque razão os arguidos iriam para Elvas, sendo quase todos de Lisboa, quando poderiam encontrar outro local, discreto, mais perto das suas residências. E interrogámo-nos porque iriam os assistentes e o arguido Carlos Silvino da Silva inventar Elvas, quando poderiam construir uma história, se se tratasse de invenção, mais perto da C.P.L. Porquê ‘Elvas' é resposta que o Tribunal não pode dar. Mas quando chegámos ao momento em que o Tribunal, com as limitações que não deixará de expor, deu factos como provados em Elvas, fê-lo afastando, para si, a dúvida razoável que a lei exige (OPS????????????????????????) Porque há um aspecto do qual não nos podemos afastar. É que se o Tribunal acabou por acreditar nos assistentes e no arguido Carlos Silvino da Silva, de forma que, para si, afastou a dúvida razoável, é também nisso que se funda a convicção. Os assistentes PODEM ter lapsos, enganos, quanto ao tempo em que localizam os factos, dão referências que para si parecem seguras, mas que PODEM estar equivocados. Sem que isso signifique mentira e tire, portanto, veracidade ao resto do seu depoimento."
Por conseguinte meus caros amigos/as, podem dar graças a Deus pela falta de inspiração dos juízes, é que com um bocado de jeito, os abusos até PODEM TER OCORRIDO NA MINHA OU NA VOSSA CASA. E PODEM TER OCORRIDO NA CASA DA JUÍZA ANA PERES. NÃO PODEM?...

P.S. - Desculpem eventuais erros ortográficos mas é que também fiz "copy paste" de partes do acórdão...

53. Adelino Granja - Advogado e Ex-Casapiano

Declarações de  Adelino Granja, advogado do "Joel" e ex-casapiano muito em evidência no início do Processo Casa Pia

Não se pode acreditar em tudo o que se ouve

TAL & QUAL -05.09.2003

 "Como posso confiar em 32 testemunhas?", questiona Adelino consciente de que é necessário separar o trigo do joio. Ou, por outras palavras, distinguir quem tem credibilidade suficiente para ser constituído testemunha e, nas suas palavras, nem todos a têm.
O advogado garante que nem todos estão a falar verdade e fundamenta esta sua convicção com um episódio ocorrido no seu próprio local de trabalho, em Alcobaça, quando o escândalo já estava no auge.
"Uma das testemunhas, que ficou conhecida como João A., esteve no meu escritório, desabafou comigo e até chorou. Contou-me tudo sobre o Jorge Ritto e o Bibi e a respeito das casas em Colares e Cascais", conta. "Até revelou pormenores sobre as relações sexuais" que então manteve, continua.
Uns meses mais tarde, foi com surpresa que Adelino Granja o reconheceu na televisão, apesar de o rapaz se apresentar com o rosto disfarçado. Perante as câmaras, ele assegurava ter sofrido abusos sexuais por parte de Paulo Pedroso.
"Acho muito estranho não me ter dito nada. Até liguei para a madrinha dele e ela disse-me que o afilhado nunca tinha referido o nome de Paulo Pedroso. Não acredito nestas denúncias faseadas", conclui o advogado, que confessa imaginar-se algumas vezes no difícil papel dos que estão atrás das grades.

***

Entrevista dada à publicação "Tinta Fresca" de Alcobaça em 25.02.2004

"As crianças da Casa Pia estão a ser cobaias da Justiça"

Adelino Granja continua frontal e directo. Em entrevista ao Tinta Fresca, o advogado de Alcobaça fala da recente rotura com o PCP e das perspectivas do Movimento da Renovação Comunista de cuja comissão permanente faz parte. Quanto ao caso Casa Pia, não poupa críticas a Pedro Strecht e Catalina Pestana e recusa responder no mesmo tom a Pedro Namora. Sobre Rui Teixeira, admite que pode passar de herói nacional a mártir desta guerra, mas considera que a verdade deve ser sempre preservada, sejam quais forem os interesses em jogo.

 

TINTA FRESCA- Que comentário faz ao facto de Carlos Cruz ter estado um ano sem se poder defender, não sabendo sequer quem o acusava nem quando?

ADELINO GRANJA- Eu escrevi várias vezes interrogando-me como é que um indivíduo está preso há mais de um ano na situação de prisão preventiva e nunca foi chamado para lhe apresentarem os factos e as circunstâncias de tempo, lugar e modo da prática dos crimes de que é acusado. O Paulo Pedroso esteve 4 meses e meio detido e a verdade é que se lhe tivessem fornecido os elementos de acusação logo no início nunca teria estado em prisão preventiva.

E conforme se passou com o Paulo Pedroso também se passou com o Carlos Cruz: foi preciso o Tribunal da Relação de Lisboa dar provimento ao recurso interposto por ele para poder ser novamente ouvido. E não há dinheiro nenhum que pague o tempo que uma pessoa está presa injustamente. Acho que houve erros processuais, pois foi necessário que o Tribunal Constitucional obrigasse o Tribunal da Relação a olhar para o umbigo e, por via disso, obrigasse Rui Teixeira a dar a mão à palmatória.

TINTA FRESCA- Neste caso, não está em causa também o prestígio do próprio juiz, colocando-o na posição de ser juiz em causa própria? Se ele libertasse o Carlos Cruz não estaria a agir um pouco contra si próprio?

ADELINO GRANJA- A minha opinião como cidadão e como advogado é que o despacho teria sempre repercussões muito negativas. Se Carlos Cruz viesse para a rua, independentemente de qualquer averiguação, isto seria uma machadada para a Justiça. Se mantivesse a prisão preventiva, sem razões plausíveis, seria uma injustiça. O juiz poderia encontrar uma medida intermédia, que seria a prisão domiciliária, que não ilibaria totalmente Carlos Cruz, mas também não o colocaria em maus lençóis.

Rui Teixeira tem sido considerado um herói nacional por ter conseguido meter pessoas mediáticas na cadeia, mas se for provado que não há motivos para tudo isto pode tornar-se um mártir nesta guerra. O processo Casa Pia equipara-se à guerra no Iraque porque não se conhecem as causas de cada uma delas. Parece que a montanha pariu um rato: nem há armas de destruição maciça no Iraque nem rede de pedofilia na Casa Pia. A acusação já saiu e a famigerada rede de pedofilia, em termos de processo de audiência, não existe. Estando tanta gente a sair da prisão, pode-se colocar a questão de saber onde é que estão os culpados, até porque havia cerca de 80 indiciados no processo e só foram acusados 12 ou 13.

Além disso, a provedora da Casa Pia deu uma entrevista ao Expresso em Agosto em que disse que o processo iria ser um terramoto. Isto causou uma grande perturbação na opinião pública e uma pessoa, que ainda por cima é testemunha no processo, não deveria ter dito isto. Em vez de acalmar os ânimos de uma sociedade alterada, ainda veio atirar mais achas para a fogueira. Isto foi dramático e, afinal, parece que não há mais arguidos.

Houve foi efeitos colaterais. Por exemplo, eu estou cheio de processos-crime contra mim e o Pedro Namora está cheio de processos-crime contra ele. Conclusão: aqueles que denunciaram ou ajudaram a encaminhar denúncias para o DIAP ou para a Polícia Judiciária é que estão agora a ser atolados com uma série de processos, por difamação, etc.

Por outro lado, as crianças da Casa Pia estão a servir como cobaias para a Justiça. É por causa delas que se estão a pôr em causa as escutas telefónicas, a prisão preventiva, as cartas anónimas, o segredo de justiça e a liberdade de imprensa. As conclusões do Congresso da Justiça vão ser apresentadas em Março e, se não tivesse havido o caso Casa Pia, o código penal continuaria a ser considerado o melhor da Europa. Foi preciso estarem envolvidas pessoas mediáticas como Paulo Pedroso, o embaixador Jorge Ritto, Ferro Rodrigues e o próprio Jorge Sampaio para a sociedade abanar, o que é um caso infeliz.

Penso que só daqui a alguns anos encontraremos as respostas para as questões que continuam hoje sem resposta. Por exemplo, porque é que em Novembro de 2002, o pedopsiquiatra Pedro Strech, que trabalhava na Casa Pia há 6 anos, não conhecia caso nenhum? Nessa altura rebentou o caso do "Joel" na SIC e no Expresso e em Janeiro, apenas três meses depois, Pedro Strech divulgou um comunicado dizendo que havia mais de 100 miúdos assediados ou violados. E agora só há 13 arguidos? Será que foram só estes que assediaram ou violaram mais de uma centena de crianças? Onde estão os outros todos? E porque é que das mais de 100 vítimas indicadas por Pedro Strecht só pouco mais de 20 constam dos processos actualmente em tribunal? Esta é uma pergunta para a qual ainda não há resposta.

Ainda há quem me critique por criticar publicamente Pedro Strech. Quem queriam que eu criticasse? Critico-o a ele como critiquei também todos os secretários de Estado que nas últimas três décadas tiveram a tutela da Casa Pia, pois nas declarações públicas na Assembleia da República mostraram-se todos amnésicos: ninguém sabia de nada!

Até o actual ministro Luís Filipe Pereira, que teve a tutela da Casa Pia durante três anos, disse na Assembleia da República, em Dezembro de 2002, que não se lembrava de ter tutelado a Casa Pia. Nós apresentámos depois fotografias dele no colégio Pina Manique a abrir o ano escolar durante dois anos lectivos seguidos! É extraordinário!

Também Teresa Costa Macedo, Rui Cunha ou Leonor Beleza não se recordavam da época em que tutelavam a Casa Pia. Isto demonstra que a Provedoria da Casa Pia tinha um poder hegemónico, fazia uma clivagem e entregava às secretarias de Estado da Família ou da Segurança Social balanços da actividade onde só havia coisas boas, para poderem renovar o mandato, ano após ano. Por isso, aconteceu este caso durante tantos anos.

TINTA FRESCA- O ministro Bagão Félix já se manifestou contra a existência de instituições como a Casa Pia que albergam centenas de crianças. Concorda com essa perspectiva?

ADELINO GRANJA- Sim, mas a Casa Pia hoje está diferente de há muitos anos atrás. Quando eu estive na Casa Pia, em 1969, eram camaratas de 30 ou 40 alunos. A partir do 25 de Abril, as camaratas passaram a ter quartinhos, separados por toldos, com 6 miúdos em cada um. Há 5 ou 6 anos atrás, os alunos foram instalados em lares, nas antigas casas dos directores, etc., do tipo residenciais com cerca de 20 crianças em cada vivenda. Há 1 ou 2 educadores para cada lar, têm o seu próprio refeitório, cozinha e vestiário.

Com a entrada da nova provedora, entraram mais 30 novos educadores para haver uma vigilância maior. Neste momento, os lares têm entre 10 e 20 alunos, todos da mesma idade, ao contrário do que sucedia antes da entrada de Catalina Pestana, onde havia miúdos de 6 anos juntos com alunos de 18 anos. Quer se queira quer não, as crianças estão a desenvolver-se hormonalmente e é difícil deixar um miúdo de 6 anos ver outro com 16 ou 18 anos, já homem formado, a tomar banho.

O grupo científico-pedagógico dirigido por Roberto Carneiro já apresentou o seu projecto e, embora eu ainda não o conheça minuciosamente, vem no sentido de tornar os grupos cada vez mais pequenos. No entanto, eu não defendo o fim da Casa Pia, considero que é uma instituição rica porque é o único colégio onde existe o ensino escolar regular ligado com o ensino oficinal e profissional. Os alunos fazem uma rotação por todas as oficinas da Casa Pia - desde a relojoaria à fundição, mecânica, rádio, electricidade, carpintaria, encadernação - e no fim analisa-se qual a oficina em que o aluno revelou maior vocação. Quem tem queda para o ensino regular, segue o ensino superior e quem não tem, segue o ensino profissional.

TINTA FRESCA- A Casa Pia paga os estudos superiores aos alunos?

ADELINO GRANJA- Paga. Os alunos continuam nos lares e têm uma bolsa de estudo para estudarem nas universidades. Se forem estudar para fora de Lisboa, ficam nas residências universitárias.

TINTA FRESCA- Como está a venda do seu livro?

ADELINO GRANJA- Está a ter uma boa saída e só em Alcobaça já vendeu 150 exemplares. O livro esgotou em várias livrarias, prevê-se que a edição de 3 mil exemplares esgote no mês de Fevereiro e se proceda à reedição da obra. O autor tem direito a 10% e logo que venha o cheque retirarei as despesas das minhas deslocações e, conforme anunciei no lançamento do livro, dividirei a verba por 3 instituições: Casa Pia, SOS Criança e Instituto de Apoio à Criança. Foi uma boa aposta da Campo da Comunicação pois o meu livro e o do Dr. António Marinho, sobre a Justiça, foram os mais vendidos da editora.

TINTA FRESCA- E é um livro que fazia falta, até como instrumento de trabalho...

ADELINO GRANJA- É verdade, por exemplo, para os jornalistas. O livro tem sido também tema de debate em algumas comunidades portuguesas, como no Canadá e na França. "A Revolta dos Gansos" serve de testemunho de uma geração de alunos, até porque eu era o único que tinha guardado as provas documentais. Também nas universidades, o tema tem sido estudado, quer nas aulas de Psicologia Aplicada, Sociologia e mesmo Direito.

TINTA FRESCA- A sua relação com Pedro Namora deteriorou-se muito acabando quase ao nível do insulto. Como analisa este processo?

ADELINO GRANJA- Eu só não ripostei da mesma forma, porque não quis descer a esse nível. Mas o futuro dirá de que lado está a razão. Não há melhor julgador que o futuro. Não entendo porque o Pedro Namora veio para a televisão dizer que eu tinha problemas mentais, que eu estou a ser pago para destruir o processo, que posso ser candidato ao Parlamento Europeu, que sou o principal responsável pela destruição do processo e que até poderei vir a matar crianças! Ele disse isto no dia 3 de Janeiro e eu só fui à RTP defender-me porque me disseram que "quem cala consente".

Pedro namora só intervém quando eu intervenho. Desta vez, intervim quando começaram a surgir cartas anónimas, todas contra o Partido Socialista. Quando atingiu o próprio Presidente da República, eu insurgi-me. As minhas divergências com Pedro Namora começaram quando eu disse ao Tal & Qual que nem todos os miúdos eram iguais e que havia alguns que não estavam a falar verdade.

Tanto assim que a testemunha que acusou Paulo Pedroso - e que eu disse que não estava a falar verdade - acabou por ser colocada fora das testemunhas credíveis, o próprio Tribunal da Relação não lhe atribuiu nenhum valor e o Paulo Pedroso foi posto em liberdade. As minhas suspeitas relativamente àquela testemunha vieram a provar-se.

Depois, Pedro Namora veio dizer que eu estava a agir assim porque estava a ser bem pago, mas quando eu comecei a colaborar com o jornal 24 Horas, a primeira pessoa com quem falei foi com o Pedro Namora, que até achou bem e me ajudou nas primeiras crónicas. Convidei-o para esclarecer tudo e acertarmos estratégias, mas não respondeu. De uma pessoa que se diz irmão e que está na mesma luta, não se entende.

54. João Marcelino- Ex Director do CM e Director do DN

Para avivar a memória.

Correio da Manhã de 29.11.02.

Director: João Marcelino

 

55. A Eurodeputada Ana Gomes ao Jornal i

A Eurodeputada Ana Gomes deu uma entrevista ao Jornal "I" no dia 26 de Fevereiro, na sua edição de fim de semana. Não foi sobre o processo Casa Pia mas ele foi abordado durante a conversa.

Aqui fica, em destaque, a parte referente à Casa Pia com uma nota: não conheço pessoalmente a Drª Ana Gomes. Nunca falei com ela. Conheço-a como cidadão, observador do seu trabalho como Embaixadora na Indonésia durante o processo da independência de Timor Leste e sigo o seu percurso político que considero o de uma figura desassombrada, frontal, apaixonada pela verdade, anti-corrupção e anti-clientelismos. As suas posições públicas sobre assuntos "quentes" ou polémicos foram, para mim, sempre na defesa dos interesses nacionais. E espero que não mude.

56. Três Comentários Lúcidos

O país não se deixa manipular quando tem acesso a factos e documentos indiscutíveis. E há cidadãos e profissionais que não deixam que lhes "tabloidizem" as mentes. Ficam aqui três exemplos de que a lucidez ainda vive dentro das pessoas que, apesar de tudo, tentam melhorar a nossa sociedade.

 

Prof. Pio de Abreu (psiquiatra de renome nacional e internacional)

Hoje no jornal gratuito DESTAK

****

Daniel Oliveira

Expresso Online

****

Ferreira Fernandes

Diário de Notícias 27 Janeiro 2011

 

59. Dr. Manuel Pedro Magalhães - Médico cirurgião

Cerca de 300 pessoas, entre caras conhecidas e anónimos, marcaram presença no Teatro Villaret no dia do lançamento de Inocente para além de qualquer dúvida.

As palavras do Dr. Manuel Pedro Magalhães são brilhantes, atingem em cheio o centro da questão. Corajosas e muito lúcidas. Insuspeitas. Cirúrgicas. Mesmo com pouca qualidade, aqui estão, com o meu mais profundo OBRIGADO.

60. Daniel Estulin - Jornalista de investigação

Daniel Estulin é um dos maiores jornalistas de investigação do mundo. Da sua vasta obra destaca-se "Toda a Verdade sobre o Clube de Bilderbergue" com mais de 3,5 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo.

www.danielestulin.com

58. Richard Webster - O Livro

Finalmente já se pode encomendar o Livro de Richard Webster "Casa Pia - A construção de uma caça às bruxas Europeia moderna".

 É uma análise e uma teoria de um autor que já dedicou anos ao estudo deste tipo de fenómenos, tendo mesmo sido o grande responsável pelo desmontrar a inocência de um casal que tinha sido vergonhosamente condenado pela opinião pública e, como consequência da pressão da mesma, pelo tribunal.

  

Aconselho a visitar o site de Richard Webster para mais e melhor informação

www.richardwebster.net

ou

www.orwellpress.co.uk

 

Este segundo site é também o contacto para encomendar o livro. Não tente clicar nas fotos. Use um destes dois sites- As ilustrações só contêm informação, não são interactivas-

  

Finalmente, uma observação: eu não conhecia Richard Webster. Nem conheço.  Ao longo deste processo (publicação do livro) trocamos apenas alguns mails nomeadamente para lhe fornecer documentação para ele conferir com a de outras fontes. Richard Webster, pela sua honestidade e pelo prestígio da sua obra, jamais publicaria qualquer coisa que ele não confirmasse por mais de uma via. A primeira vez que me escreveu foi em 30 de Setembro de 2010. Confessava-se "abismado" com a sentença e afirmava que tinha pronto um artigo de 7.000 palavras para publicar no seu site. Só que, à medida que ia investigando e juntando as peças, o artigo foi crescendo e transformou-se num livro: o que agora está à vossa disposição. E por tudo isso, estou completamente à vontade para recomendar a sua leitura. Ele ajuda muito a entender como se pode ter chegado onde se chegou no Processo Casa Pia.

Esta é uma leitura de alguém intelectualmente sério, que conhece estes fenómenos, e que não alinhou com o clima de histeria colectiva artificialmente construído em Portugal.

 

 

61. Isabel Costa Bordalo - Jornalista

Castelo de cartas judicial

Em Fevereiro de 2001, a França acordava horrorizada para um caso de pedofilia que iria conduzir à detenção de 260 pessoas implicadas nos crimes de abuso e agressão sexual a menores e ao maior fiasco da justiça francesa que culminou a 24 de Abril de 2009 com a aplicação de uma "reprimenda" ao juiz que instruiu o caso.

O epicentro do escândalo situava-se, no norte de França, numa pequena cidade chamada Outreau, que no espaço de poucos meses foi varrida por um autêntico terramoto, naquele que ficou conhecido como o «caso Outreau».

A memória do caso de pedofilia, que colocou a vizinha Bélgica em comoção e que resultou na condenação a prisão perpétua do pedófilo e assassino Marc Dutroux, serviu de rastilho para dar amplitude ao processo francês, que começou com as denúncias dos três filhos de um casal do bairro popular Tour de Renard (em português, Torre do Zorro).

Myriam e Thierry Delay foram detidos depois de terem sido denunciados pelos filhos por alegados abusos sexuais cometidos durante cinco anos. Ao longo das inquirições, novos nomes foram agregados à lista de suspeitos - muitos pertenciam à mesma família das supostas vítimas - num efeito bola de neve que levou a imprensa a noticiar a implosão de uma grande quadrilha de pedófilos.

Ávida por fazer render o peixe, a imprensa agarrou-se ao processo, que o jornalista francês Gilles Balbastre classificou como "Chernobyl judiciário", e descreveu com insistência e abundância de pormenores os contornos da rede.

Um repórter da France 2, numa das muitas descrições dos factos, afirmou a 15 de Novembro de 2002 que "as quatro crianças foram violadas pelo pai, primeiramente, depois por pessoas próximas, alguns comerciantes do bairro. Os pais pagavam, desse modo, as suas dívidas".

O insuspeito Le Fígaro mencionou, sem hesitação, as profissões de alguns dos culpados, numa notícia publicada a 21 de Novembro de 2001, conforme elenca Gilles Balbastre: "São citados os nomes de um oficial de justiça e a sua esposa, de uma enfermeira escolar, de um padre operário, de um motorista de táxi que conduzia as pequenas vítimas a uma fazenda na Bélgica, próxima a Yprés, onde ocorriam noitadas especiais, gravadas por dois proprietários de uma sex shop de Ostende".

Nas dezenas de reportagens que diariamente alimentaram um caudal informativo dedicado ao caso de Outreau, os jornalistas chegam a estabelecer ligações com a rede de pedofilia do caso belga Dutroux, indo além das meras afinidades fonéticas.

Surgem testemunhas a credibilizar os factos, advogados a fazer confidências sobre crianças maltratadas e fontes, muitas fontes, umas identificadas, outras anónimas. Nos ecrãs de televisão aparecem os locais da tragédia: a fazenda frequentada por pedófilos belgas, onde as crianças "teriam sido violentadas e filmadas", com planos do proprietário, "um comerciante de animais que não mora no local", que gesticula apontando com o dedo o local da saída, numa atitude que os repórteres interpretam como suspeita e incriminatória; a sex shop, que nunca existiu, e o táxi que conduzia as crianças abusadas até à Bélgica.

Analistas debatem as razões do escândalo sem precedentes. Evocam o desemprego endémico em Nord-Pas-de Calais, uma das regiões mais pobres de França, com os maiores índices de mortalidade infantil, analfabetismo e alcoolismo, e tudo se conjuga para um rumo que acaba por ser, abruptamente, invertido com as declarações de Myriam Badaoui, mãe das três crianças e um dos pilares da acusação. A mulher declara ter mentido - "Eu sou uma doente e uma mentirosa. Menti sobre tudo" - e inocenta as primeiras 13 pessoas incriminadas pela justiça. Outras quatro, nas quais se incluem as principais testemunhas de acusação, são mais tarde inocentadas. Dois dias mais tarde, volta a acusá-las. E, a seguir, volta a inocentá-las num ziguezaguear que compromete irremediavelmente todo o processo e que não deixa outra alternativa ao juiz de instrução, Patrice Burgaud, que não seja a absolvição de todos os arguidos, à excepção de quatro (os que provocaram o escândalo).

A França voltava a ser sacudida, desta vez, pelo espanto que a monumental mentira provocava e que pôs em causa a justiça e os tribunais. O Presidente da República Nicolas Sarkozy recebeu os absolvidos e pediu desculpa em nome da França; o presidente da Assembleia Nacional, um antigo juiz de instrução, criou uma comissão parlamentar de inquérito e o país iniciou um debate sobre qual a magistratura que deseja.

A decisão do Conselho Superior da Magistratura de França, que no dia 24 de Abril de 2009 aplicou uma repreensão ao juiz por ter mandado para a prisão várias pessoas (uma delas suicidou-se na cadeia) com base em testemunhos falsos, causou nova polémica, com a opinião pública a considerar a sanção demasiado leve.

A imprensa afinou pelo mesmo diapasão, esquecendo-se da sua responsabilidade no caso ao servir diariamente mentiras dadas como verdade, factos não escrutinados que alimentaram uma opinião pública sedenta de justiça e pressionando, desta forma, um jovem juiz - que veio criticar quando o processo desmoronou - por não ter maturidade suficiente.

O processo Casa Pia assemelha-se cada vez mais ao caso Outreau. Várias testemunhas deram o dito por não dito e vieram afirmar, mais tarde, que mentiram. Em Fevereiro de 2011, Ilídio Marques, jovem vítima de abusos, deu uma entrevista ao Expresso, onde do seu testemunho inicial mantém apenas que foi vítima de abusos cometidos pelo "padrasto, por uma educadora da Casa Pia e por pessoas exteriores à instituição".

"Qualquer pessoa que leia o acórdão e o processo, e esse foi um dos motivos que me levaram a falar, vai reparar que 80% do que lá está é mentira", afirmou há um ano aquele que foi uma das testemunhas chave do processo e que numa entrevista ao semanário Expresso tenta "remediar" uma coisa que fez em miúdo: "Entrámos todos no mundo do vamos lá ver o que isto dá ou não dá. Somos putos não nos acontece nada...".

As vítimas da Casa Pia, segundo o testemunho do jovem, foram atirando nomes - os que "já tinham passado na televisão" - montando um circo judicial com a ajuda das televisões e dos jornais, perante o entusiasmo de uma multidão sedenta de espetáculo.

O Tribunal da Relação de Lisboa vem agora decretar a nulidade do acórdão na parte que diz respeito aos abusos cometidos na casa de Elvas, obrigando a que os crimes ali praticados tenham de ser julgados de novo em primeira instância, e, consequentemente, diminuiu a pena de alguns dos condenados.

O caso Outreau ruiu quando as cartas começaram a ser tiradas. O processo Casa Pia está cada vez mais instável. Entre um e outro há apenas uma diferença: O caso português partiu da existência de abusos, mas é hoje difícil distinguir o que é real neste castelo de cartas judicial.

 

Isabel Costa Bordalo,

Jornalista

 

3 de Fevereiro de 2012