Jornal "Público" 27.11.2010
O Meu Pai Abusou de Mim?
Meredith Maran, jornalista e escritora, acusou o pai de incesto. Estava-se no início dos anos 80 e Meredith lia e escrevia compulsivamente sobre denúncias de casos de abuso sexual, sobre famílias devastadas, sobre pais enviados para a prisão. Convenceu-se que tinha reprimido as suas memórias de abuso. Dez anos depois começou a duvidar das suas certezas e escreveu My Lie (A Minha Mentira). Excerto do livro.
Quando eu estava na casa dos 30 anos, acusei o meu pai de abusar de mim. Não o vi nem falei com ele durante oito anos. Nem deixei que os meus filhos o vissem. E depois percebi que não era verdade.
No final dos anos 80, um punhado de académicas feministas tinha realizado algumas pesquisas inovadoras e revolucionárias e avançado com algumas novidades perturbadoras: o incesto não era a anomalia rara que desde há muito se acreditava ser; acontecia muitas vezes, em famílias normais. Um fenómeno psicológico denominado memória reprimida tinha permitido que isto não tivesse sido notado, ou sequer conhecida a sua existência. Tal como Freud tinha definido um século antes, o impacto do abuso sexual infantil em mentes jovens era tão profundo que as vítimas muitas vezes perdiam as suas memórias, durante anos ou mesmo décadas.
Estas descobertas transformaram o incesto, que deixou de ser um sórdido segredo da vida familiar e passou a ser uma obsessão. Ao longo da década de 80 e início da de 90, vários ícones culturais, como, por exemplo, Roseanne Barr e Oprah Winfrey, vieram a público afirmar que eram sobreviventes de incesto. Memórias de incestos entraram nas listas de livros mais vendidos. A Cor Púrpura, um romance acerca de incesto, recebeu o Prémio Pulitzer. Ao longo de todo esse tempo, crianças foram retiradas dos seus lares, e pais foram enviados para a prisão. Milhares de famílias foram desfeitas por acusações de abuso sexual, muitas vezes por filhas adultas que declaravam ter memórias reprimidas, e depois recuperadas, de terem sido molestadas pelos seus pais, quando eram crianças. A minha foi uma dessas famílias.
Em 1982, quando já trabalhava como jornalista e escritora e tinha dois filhos pequenos, fui incumbida da tarefa de editar um livro de uma dessas investigadoras feministas pioneiras. Fiquei chocada e emocionada com o que aprendi. Com um zelo de missionário, passei os anos que se seguiram a escrever, para jornais e revistas, artigos que denunciavam casos de abuso sexual de crianças. Quanto mais aprendia, mais sentia que tinha encontrado um grupo onde me sentia à vontade. Achava tudo imensamente interessante: o último estudo sobre incesto, a última teoria, a mais promissor dos novos tratamentos. Em comparação com tudo isto, as conversas com o meu marido e os meus amigos pareciam sensaboronas.
Numa determinada noite, estava eu num grupo de terapia, a fazer pesquisa para um artigo, quando, após me sentar a ouvir um dos homens acusados a falar, ouvi uma voz dentro da minha cabeça. Era o meu pai. Eu tinha 15 anos e ele estava a gritar com o meu primeiro namorado, o Carl: "Ela é minha! Se não a deixares em paz, mato-te!"
E depois ouvi o Carl a gritar-me as mesmas coisas. Qual era a versão verdadeira? Quem era o homem violento?
O meu pai muitas vezes perdia a paciência. Esbofeteou-me mais do que uma vez. Mas aquela zanga tinha mesmo acontecido? Estaria eu a imaginar toda a situação? Por que razão tinha eu saído de casa aos 17 anos?
Quando eu era pequena, o meu pai era o meu melhor amigo, e eu era a melhor amiga dele. Tínhamos tudo em comum, incluindo isto: ambos gostávamos mais um do outro do que do meu irmão. Mas quando cheguei à adolescência deixei de me interessar por ele. Tinha conhecido o Carl e tinham-me proibido de estar com ele. De um momento para o outro, o meu herói tornara-se meu inimigo.
Os meus pais tinham-se divorciado e o meu pai voltou a casar-se duas vezes, acabando por ir viver para Porto Rico. A minha mãe tinha-se mudado para um apartamento perto de mim, mas a relação entre nós também estava tensa, pelo que poucas vezes lá ia.
Naquela noite, quando regressei a casa vinda da sessão do grupo de terapia, não conseguia parar de chorar. O meu marido, Robert, abraçou-me e, pela primeira vez em dez anos de casamento, o meu corpo involuntariamente encolheu-se e repeliu-o face ao seu toque. Deitei-me no sofá e chorei até adormecer.
Comecei a ter sonhos - acerca de incesto, acerca do meu pai -, mas como poderia eu saber se eram baseados em memórias? Consultei uma série de terapeutas, e o meu casamento desfez-se. Por volta da mesma altura, dei por mim, surpreendida, a apaixonar-me por uma mulher, Jane, que conhecera através do meu emprego. Tal como todas as outras pessoas de que eu me tinha cercado, também ela era uma sobrevivente de incesto. O meu pai e eu não vivíamos no mesmo continente desde que eu saíra de casa. Agora, ele e a sua mulher, Gloria, uma mulher apenas seis anos mais velha do que eu, anunciaram que se iam mudar para perto de mim, para ele poder passar mais tempo com os seus netos. "Mais vale tarde do que nunca", disse-me o meu irmão, sarcasticamente. Os filhos dele, Emmy e Zach, tinham seis e oito anos; os meus, Matthew e Charlie, tinham seis e sete. O meu pai era o único avô que eles tinham.
À medida que se aproximava a chegada do meu pai, comecei a sentir alguma esperança. Talvez tê-lo de novo na minha vida nos pudesse aproximar e afastar os meus medos.
O primeiro pensamento que me surgiu quando o vi foi: "Claro que ele não pode ter feito nada."
"Como é que podes deixar os teus filhos com ele?", perguntou a Jane. "Não achas que devias dizer ao teu irmão?"
"Dizer o quê ao meu irmão?", perguntei. "Ainda nem sei o que aconteceu."
"Tens que acreditar em ti", respondeu a Jane. "Os sentimentos não mentem. Os sonhos não mentem."
Não disse nada ao meu irmão. Em vez disso, observei cuidadosamente o meu pai sempre que ele estava com os meus filhos, e dava-lhes banhos depois de eles o terem visitado, inspeccionando discretamente os seus corpos.
Uma noite, estava a trazer de carro Matthew e Charlie de casa do avô, onde tinham dormido durante a noite. O Matthew disse: "O avô zangou-se com o Charlie e atirou-o com força para o sofá. O Charlie chorou."
Fiquei furiosa. Depois de eles terem adormecido, telefonei-lhe.
"Já sabes como os miúdos exageram as coisas", disse ele.
Onde é que eu já tinha ouvido aquilo? Ah, sim: na boca de abusadores de crianças e pais incestuosos e abusadores em rituais que eu tinha entrevistado e lido ao longo de anos.
Na vez seguinte que Gloria telefonou a convidar os miúdos para irem a casa deles, disse-lhe que de então em diante eu ia ficar com eles, enquanto os meus filhos estavam com ela e com meu pai. Ela não perguntou por quê. Eu não disse por quê.
Depois o meu pai e eu discutimos ao telefone acerca da minha relação com a Jane.
"Aos meus olhos não é verdadeiro", disse ele, "nem aos olhos da lei."
"Pensei que gostavas da Jane", respondi. Desde o meu primeiro namorado até ao marido de quem me divorciei, o meu pai tinha ignorado, ridicularizado ou menosprezado todos os homens que eu tinha amado. Estava de novo a fazer o que sempre fizera: a castigar-me por amar outra pessoa.
"Consigo perceber quão afectados estão os teus filhos", continuou ele. "Eles estão perturbados com a tua homossexualidade."
A minha vida com o meu pai passou-me diante dos olhos. Os anos da infância, a necessitar dele e a idolatrá-lo. Os anos da adolescência, a lutar com ele. Os anos de adulta, a sentir a falta dele. E os últimos anos, a suspeitar dele. Agora sabia a verdade. Ele não se importava com quem eu era ou do que eu necessitava. Ele só se importava com a maneira como eu o fazia sentir. Claro que ele era capaz de me utilizar para o seu próprio prazer, descartando-me quando já tinha acabado. Estava agora a fazer isso mesmo.
Os meus pesadelos de incesto não eram fantasias. Eram memórias. As mãos do meu pai, grandes e grosseiras. Os pêlos magros e negros nos nós dos seus dedos.
"Estás enganado quanto aos meus filhos", disse-lhe. "Estás enganado sobre mim."
"Tu nunca suportaste ouvir a verdade acerca de ti própria", disse ele. "É por isso que te rodeias de pessoas de mente fraca que não te questionam. Sou o único que conhece o teu verdadeiro "eu".""Nunca mais me telefones." Bati com o telefone.
Aderi a um grupo de ajuda para sobreviventes de incesto e li The Courage to Heal, um novo livro que era uma bíblia para o movimento de recuperação de memórias e que veio a vender mais de dois milhões de exemplares. Estava repleto de histórias pessoais, listas de verificação, conselhos sobre como e onde revelar a verdade. Agora estava na altura de eu contar à minha família.
Convidei o meu irmão para ir jantar comigo.
"Tenho quase a certeza de que o pai abusou de mim", contei-lhe.
Puxei de uma lista - "O que me faz pensar que sofri abusos" - e li-a para ele, vendo-o a lutar com o que eu estava a dizer. "Eu sei que estas coisas acontecem", disse ele por fim, "mas nunca pensei que..."
A minha cunhada telefonou-me às sete da manhã do dia seguinte. "Lamento imenso. Há alguma coisa que eu posso fazer para te ajudar?" Senti-me tão aliviada. Todas aquelas histórias de terror acerca de sobreviventes de incesto cujas famílias não acreditavam neles - isso não me ia acontecer.
"Eu e o Doug estivemos a conversar", continuou ela. "Achas que é seguro deixar a Emmy e o Zach sozinhos com o teu pai?" Pensei neles com os meus dois rapazes no apartamento do meu pai, a rir das suas piadas sem graça e a beber latas de Pepsi que não deviam beber. "Estou a destruir a minha família", pensei. "E nem sequer tenho a certeza da razão por que o estou a fazer."
Na minha cabeça, ouvia a minha namorada e os meus terapeutas a dizer: "Acredita em ti própria. Se pensas que sofreste abusos e a tua vida apresenta os sintomas, então foste mesmo molestada."
"Não", disse à minha cunhada. "Se fosse a ti, não deixava os teus filhos com ele."
Fui ver a minha mãe, e contei-lhe aquilo em que estava a pensar.
"Quando tu tinhas dois anos", contou ela a tremer, "ele disse-me que tu ficavas demasiado sexy com o teu fato de banho. Ele estava tão zangado. A reacção dele enojou-me. Não percebi por quê." Oh, meu Deus, pensei, era verdade: sou realmente uma sobrevivente de incesto.
"Como é que eu deixei que isto acontecesse à minha menina?", disse ela a chorar. Depois mudou de tom. "O que estás a dizer é impossível. O teu pai não te pode ter feito isso. Ele nem sequer gostava de fazer sexo comigo."
No dia seguinte telefonou-me logo de manhã. "O teu pai tinha os seus defeitos, mas de forma alguma ele te poderia ter feito uma coisa dessas." Fez uma pausa. "Tu eras a coisa de que ele mais gostava no mundo."
"Lamento que isto esteja a ser tão difícil para si", repliquei.
Pouco depois, o meu pai deixou uma mensagem no meu atendedor de chamadas.
"Olá, Meredith. Estava a pensar se já estarás pronta para reatar o nosso relacionamento."
Não lhe respondi.
Em 1990, havia já dois anos que seguia as instruções contidas no livro The Courage to Heal. Cortei todos os contactos com o meu pai e mantive os meus filhos longe dele. Mas percebi que precisava de parar de escrever e ler acerca de incesto, de terminar todas as terapias e passar de novo algum tempo com velhos amigos, sair para tomar uma bebida e ir ver filmes que me fizessem rir e não me fizessem chorar.
Para mim, funcionou. Mas enquanto os meus pesadelos e memórias iam desaparecendo, as da Jane iam ficando cada vez mais pormenorizados e perturbantes. Ela lembrava-se de homens e mulheres à volta de uma fogueira numa floresta, a cantar e vestindo túnicas escuras.
Por esta altura, dezenas de casos de abusos em rituais satânicos estavam a chegar aos tribunais. Mas estava também a aumentar uma reacção, comandada pela Fundação da Síndroma da Falsa Memória, e os mesmos jornais e programas de televisão que tinham divulgado as histórias de incesto estavam agora a acompanhar a nova tendência. Terapeutas foram processados por implantarem falsas memórias, retiraram-lhes as licenças médicas e foram obrigados a pagar indemnizações. As condenações foram anuladas, os acusados foram libertados. Mais do que uma vez dei por mim a duvidar de mim própria. Teria eu criado as minhas memórias de incesto? Seis anos antes dissera ao meu irmão e à sua mulher para não deixarem os seus filhos a sós com o meu pai. Agora, disse-lhes, já não tinha tanta certeza. E fiquei aliviada ao admitir isso. Também me estava a ser cada vez mais difícil acreditar nas histórias da Jane acerca de abusos em rituais. Acabámos por nos separar.
O meu pai sofreu um ataque cardíaco, suficientemente grave para me fazer perceber que tinha que parar com aquilo enquanto havia tempo. O que quer que tivessem sido as minhas acusações quando as fizera - uma declaração de verdade, da verdade como eu a entendia então, de solidariedade -, agora era uma questão totalmente diferente. Muito possivelmente, uma questão de vida ou morte.
Pensei em simplesmente aparecer em sua casa, mas tive medo de que ele me mandasse embora. Em vez disso, mandei um postal. Ele respondeu, dizendo que estava pronto para me ver.
Ele estava mais macilento do que eu me lembrava. Com menos cabelo. Mais baixo. Na minha mente, ele era tão maior. Sempre que tentava falar com ele sobre o que acontecera, ele mudava de assunto. Passámos essa tarde, e os anos que se seguiram, dessa forma: não fazíamos perguntas, não dávamos respostas. E depois, quando finalmente fiquei totalmente bem da minha mente, os médicos diagnosticaram ao meu pai a doença de Alzheimer, e ele começou a perder a sua mente. Eu tinha duas opções. Podia esperar que ele esquecesse o que eu lhe tinha feito, juntamente com outros detalhes que escapassem pelas fissuras do seu cérebro. Ou podia convencê-lo a ter uma conversa comigo acerca do que eu tinha feito e por que razão o tinha feito - e quanto eu o lamentava.
Fui vê-lo. "Quando aquilo aconteceu", disse ele sem qualquer preâmbulo, "pensei que em poucos dias haverias de cair em ti." Franziu a cara, buscando na memória. "Mas depois continuei a telefonar-te, e tu não falavas comigo."
Engoli em seco. "Nunca te esqueci, papá."
"Também telefonei à tua mãe. Perguntei-lhe se poderia haver alguma ponta de verdade no que tu estavas a dizer."
Oh, meu Deus, pensei. Se ele não tem a certeza de não o ter feito, como é que eu posso ter a certeza? "E foi assim que concluiu que não tinha abusado de mim?", perguntei.
"Sabes como é que é", disse ele. "Quando ouvimos algo muitas vezes, começamos a acreditar que é verdade."
"Oh, sim", respondi. "Sei bem o que isso é."
* Alguns nomes foram modificados.
Tradução de Eurico Monchique
Excerto editado do livro My Lie: A True Story of False Memory, de Meredith Maran (editora John Wiley & Sonsmory)
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Um outro caso vindo a público recentemente é o de Virginie Madeira. Aqui fica a capa do livro que se encontra à venda.
Começa assim:
"A 21 de Junho de 2001, António Madeira foi condenado a doze anos de reclusão criminal e a dez anos de interdição dos seus direitos civis, cívicos e de família pela violação repetida de sua filha Virginie. António Madeira está inocente deste crime."