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Público -05.09.2010

Por: Ricardo Sá Fernandes

UMA QUESTÃO DE CIDADANIA

1-     Na passada sexta-feira, ficou a saber-se que os juizes do processo Casa Pia deram como provados 3 crimes de abuso sexual cometidos por Carlos Cruz, a que correspondeu a aplicação de uma pena de 7 anos de prisão efectiva. Idem para os outros arguidos, apenas com  diferença de  número de crimes e  anos de prisão.

O país descansou. Alguns terão festejado pela noite fora. A pedofilia é o mais horrendo dos crimes, em cujo combate se misturam, no mesmo lado da barricada, todos os homens e mulheres, os bons e os maus, os santos e os ladrões. Finalmente, povo, juizes e comunicação social de mãos dadas e por uma causa justa. Do outro lado, derrotados e a caminho da prisão, homens poderosos e perversos. Afinal, Portugal não está tão mal.

2-     E se não for assim? E se estes homens  - Cruz, Abrantes, Diniz, Ritto e Marçal - são inocentes? E se Carlos Cruz, como sempre  tem  sustentado, não conhece os outros arguidos, nem as vítimas, nem os supostos locais de abuso? E  se a condenação foi feita sem outra prova que não as declarações dos acusadores, as quais se revelam contraditórias, incongruentes, não plausíveis e manifestamente efabulatórias? E se este processo é, afinal, uma terrível fantasia, consciente ou inconsciente, eventualmente perversa, de alguns jovens adolescentes efectivamente abusados por outros que não estes que estão a ser julgados, parte dos quais, aliás, já identificados nos autos e até condenados noutros processos?

Se assim for, isso significa que a vida de Carlos Cruz e de outros homens inocentes foi destruída sem fundamento, sendo eles, então, vítimas da mais vil das perseguições,  meros bodes expiatórios de uma culpa de outros, que  lhes destroçou a família, a carreira, a saúde e a alegria de viver. Se assim for, isso quer dizer que o cerimonial de sexta-feira não é mais do que a adaptação ao século XXI de um grandioso auto de fé, daqueles que até ao século XVIII os juizes do Santo Ofício ofereciam ao povo.

3-     Eu tenho a convicção íntima de que é este cenário de trevas que está a acontecer. Vivi durante 7 anos a realidade deste processo e conheço-o até às entranhas. Tenho acerca deste assunto uma certeza moral, aquele tipo de certeza que todos temos de que, quando vamos a casa da nossa mãe, ela não nos envenenou a sopa.

É em nome dessa convicção, alicerçada na racionalidade do que conheço, que, com Serra Lopes, tenho emprestado a minha voz e a minha energia à luta de Carlos Cruz pela prova da sua inocência, sentindo com isso o enorme privilégio que é ser advogado.

Porém, fora do tribunal, nunca procurei impor esta minha visão a ninguém. Peço a todos que sejam agnósticos, que não condenem sem conhecer,  porque o que se quer num pais civilizado é que a opinião pública se estruture na base da informação e  do conhecimento.

4-     É por isso que os termos em que foi divulgada a sentença do processo da Casa Pia é um retrocesso jurídico e civilizacional que não posso calar. Basta dizer que seria impossível com a lei em vigor no Estado Novo, mesmo a que se aplicava nos tribunais plenários. E que essa não é a prática, habitual e consagrada, por mim vivida em trinta anos de advocacia.

 Na sexta feira, o tribunal, após vinte meses de processo  deliberativo, com vários adiamentos, comunicou, urbi et orbi, os factos provados, o número de crimes e as penas de prisão. Quanto aos fundamentos da decisão, disse aos arguidos para a virem buscar na quarta feira seguinte.

Não bastou, como seria exigível, não ter uma cópia da sentença para dar a cada um. Mais do que isso, em manifesta violação da lei, que obriga à leitura de uma súmula da fundamentação, o tribunal formulou um arremedo genérico de considerações e, no que toca às condenações aplicadas  a Carlos Cruz, omitiu  pura e simplesmente qualquer referência. Carlos Cruz  não conhece, pois, as provas e os fundamentos por que foi condenado. O auto de fé já teve lugar, mas ele nem pode conhecer os motivos que o ditaram.